Para sempre Domingos de Oliveira: 'Todas As Mulheres do Mundo' encerra a mostra 'Eu Sei Que Vou te Amar'

'Todas As Mulheres do Mundo' encerra a mostra 'Eu Sei Que Vou te Amar' do Estação numa celebração da força autoral de seu saudoso realizador

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Lançado em 1966, 'Todas as Mulheres do Mundo', é centrado na relação entre o jornalista Paulo (Paulo José) e a professora Maria Alice (Leila Diniz), numa ciranda de flertes e de traição

Apesar de ter saído de cena sem pedir licença à saudade da gente, Domingos de Oliveira (1936-2019) se faz eterno cada que sua obra cinematográfica é exibida. Quarta, às 21h, caberá a ele, lá do Infinito, fechar a mostra do Estação NET Botafogo que celebra seu objeto mais querido, a paixão, com uma projeção de "Todas as Mulheres do Mundo". A comédia romântica nº1 do Brasil completará seis décadas de existência em 2026, quando Domingos faria 90 anos. Essa sessão na mítica sala de exibição da Voluntários da Pátria 35 antecipa a festa.

Lançado em 1966, o longa-metragem é centrado no idílio entre o jornalista e dramaturgo Paulo (Paulo José) e a professora Maria Alice (Leila Diniz), numa ciranda de flertes e de traição. Todo o enredo se estrutura como um relato de Paulo ao amigo Edu (Flávio Migliaccio), que tem desdém pelos laços sentimentais. Tais relatos passam por um jogo de sedução em que ele tem de driblar as investidas da prima hedonista e de uma suicida.

É um dos raros exemplares do género a unir sucesso popular e prestígio de crítica. Foi laureado com o troféu Candango do Festival de Brasília de Melhor Filme, com outros quatro prémios e mais uma menção honrosa para Leila. O projeto nasceu como um gesto de "volta para mim" de Domingos para a atriz, numa reação desesperada ao fim do relacionamento entre eles. O pleito não deu certo, mas rendeu uma bela amizade e um filme inesquecível.

Reprodução Facebook - Domingos de Oliveira: "O filme mostrou-me que todos os amores são iguais e completamente diferentes, expresso pela nossa solidariedade com os sofrimentos do outro'

"O filme mostrou-me que todos os amores são iguais e completamente diferentes, expresso pela nossa solidariedade com os sofrimentos do outro", disse Domingos ao Correio da Manhã antes de morrer. "Quando o filme foi finalizado, Leila e eu já éramos amigos e, sem dor alguma, tomamos um porre (bebedeira)".

Fotografado por Mário Carneiro (1930-2007), "Todas As Mulheres Do Mundo" nasceu em película e ensinou gerações na sua pátria como se faz uma love story com brasilidade. O argumento é baseado nos contos nos contos "A Falseta" e "Memórias de Don Juan", de Eduardo Prado, e se divide em seis partes: "A conquista", "Primeiras consequências", "O bolo", "A reconciliação", "Outro bolo" e "Uma revelação". Seu desempenho comercial fez Domingos virar uma promessa de excelência na estrada das comédias de linha popular nos anos 1960. Teve menos público com a longa seguinte, "Edu, Coração de Ouro", de 1968, mas ampliou seu status de cult. Voltaria a encher cines em janeiro de 2003, quando "Separações" estreou. O filme ganhou a competição internacional do Festival de Mar Del Plata na Argentina, onde Domingos ganhou o prêmio de Melhor Ator no papel do bardo Cabral. Essa condição de ser cultuado se manteve pelas duas décadas em que filmou com câmeras digitais.

Laureado em múltiplos eventos por "BR716", com o qual venceu o Festival de Gramado de 2016, Domingos dizia ser movido por um sentimento de grupo. "Os jovens de hoje são bem mais velhos", disse ele, que lançou um manifesto chamado "B.O.A.A.", o "Baixo Orçamento e Alto Astral", talhado em meio à batalha dos editais da Lei do Audiovisual. Elas eram o arranque da sua obra audiovisual, paralela à sua efusiva criação teatral, mas, na falta de suporte estatal ou de empresas privadas, a adesão dos amigos ajudava e unia profissionais em prol do sonho de ver novos longas-metragens nos écrans.

Depois de um hiato estimado em 18 anos sem filmar para o cinema, dedicado à TV Globo e aos palcos, Domingos saiu da seca em 1998, com "Amores", a longa vencedora do Kikito de Júri Popular em Gramado que abre uma porteira para pastos verdíssimos onde o realizador carioca viria a semear a essência estética de uma nova fase dramatúrgica. Priscilla Rozenbaum, sua companheira de vida e de criação, foi sua principal parceira artística nessa fase. Hoje, ela traz ecos do cineasta para o experimento teatral que prepara atualmente, inspirando-se nos feitos do realizador Jean-Luc Godard (1930-2022) e sua obra semiótica, criada a partir de "Acossado", em 1960.

A definição precisa para esse novo ciclo de Domingos (com Priscilla) que ganhou mais viço entre 2002 e 2010, foi definido com precisão pelo crítico Carlos Alberto Mattos na sua resenha da dramédia "Juventude" feita para o Segundo Caderno do jornal O Globo, no Natal de 2008. No texto, CAM definiu a estética de Domingos como um ménage à trois que funde fazer cinema, fazer teatro e viver. Trocado em miúdos, a obra dele passa a ser um amalgama indissociável de vivências de palco (em especial a sua incursão na série de encenações musicais "Cabaré Filosófico"), lutas para seguir a filmar e modos de amar com liberdade e paixão. Esse era o ponto central de todas as histórias por ele contadas nesse perímetro de tempo, sempre coroado de láureas e sempre delineado pela lapidação da intimidade do realizador com um léxico avesso ao uso de película. Era no digital que os diálogos do Seu Oliveira destilaram a sua acidez máxima numa náusea celebrativa em relação às artimanhas do arlequim chamado Acaso.

Tal arlequim regressa serelepe ao Estação amanhã, com Paulo e Leila num filme "pra sempre".