Márcia Faria: 'Envelhecer, nesse mercado audiovisual, ainda é quase um ato subversivo'
Laureado com o prêmio de Melhor Filme no Festival Mar de Plata (Argentina) e a láurea de júri popular no Festival de Cinema do Uruguai, "A Procura de Martina" chega enfim ao circuito, após um périplo pelas Américas que começou em outubro na Première Brasil. Sua realizadora, Márcia Faria é uma das mais respeitadas assistentes de direção do país, conhecida também por seu trabalho como diretora de TV e hoje também de streaming. A estrada plural dessa cineasta ganhou os holofotes internacionais quando ela concorreu à Palma de Ouro de curta-metragem de Cannes, quinze anos atrás, com "Estação", avaliada por um júri que incluiu Cacá Diegues (1940-2025) no time votante. Agora, com a saga de Martina, essa internacionalização de seu talento segue por trilhas argentinas, uma vez que ela firma parceria com Mercedes Morán, que trabalhou em cults como "La Ciénega - O Pântano" (2001) e "Um Amor Inesperado" (2018).
Numa atuação estonteante, Mercedes assume o papel central do longa de Márcia, vivendo uma viúva que busca o paradeiro de seu neto, nascido em cativeiro durante a ditadura militar da Argentina. Essa peleja pelo rapaz já dura 30 anos. A necessidade de encontrá-lo se torna ainda mais urgente depois que Martina recebe o diagnóstico de Alzheimer. Quando descobre que o neto pode estar no Brasil, ela embarca em uma jornada em que passado e presente se misturam, transformando a busca em uma luta contra o esquecimento. Uma confeiteira encarnada com esplendor por Carla Ribas complica a peleja afetiva de Martina nessa produção filmada em locações espalhadas por várias partes do Rio, como Copacabana, Madureira, Ramos, Tijuca e Jacarepaguá.
Na entrevista a seguir, Márcia fala desse processo.
O quanto a experiência solitária de Martina, mesmo com as amigas ao lado dela, reflete a condição feminina numa América de opressões?
Márcia Faria: A América Latina carrega raízes profundas de machismo e misoginia, sustentadas por opressões estruturais — mas a opressão patriarcal atravessa fronteiras e afeta mulheres no mundo todo. A solidão de Martina não se deve apenas ao luto, mas também a um sentimento de deslocamento, como mulher estrangeira, como mãe que perdeu a filha, como alguém que não se encaixa nos códigos sociais ao seu redor. O luto é uma dor íntima, mas, em certos momentos históricos, ele transborda e se torna coletivo, especialmente quando atravessa os corpos e as vidas de tantas mulheres ao mesmo tempo, como no caso das Avós da Praça de Maio, que transformaram sua dor em uma luta por memória e justiça. Ainda que a dor e a resistência sejam vivências intransferíveis, o filme também revela a potência da sororidade. As amigas de Martina não negam sua solidão, mas oferecem algo essencial: uma rede de apoio, de amizade e de resistência. O paradoxo entre união e isolamento, entre o individual e o coletivo, emerge como um traço da experiência feminina em contextos de opressão.
O quanto o teu filme te municia de saber sobre as Américas Hermanas, de língua espanhola? Que relações com o cinema dos argentinos foi necessária para que sua Martina nascesse?
A escolha de uma protagonista argentina foi, claro, uma decisão narrativa, mas também uma forma de afirmar um pertencimento ao espaço latino-americano. Ao longo da vida, o cinema da região me mostrou caminhos possíveis para contar histórias íntimas com densidade política. Filmes como "La Ciénaga - O Pântano", "A Noiva do Deserto", "Gloria"... todos me ensinaram que há potência em observar o cotidiano com atenção radical, que muito do que importa se revela nos gestos mínimos, nos vazios, nos deslocamentos. A convivência entre atrizes argentinas e brasileiras trouxe ao filme uma complexidade que só pode nascer do encontro. Mercedes Morán, Cristina Banegas e Adriana Aizemberg trabalham com uma precisão contida, que carrega força mesmo quando tudo parece suspenso. Carla Ribas, Luciana Paes, Carolina Virguez, Stella Rabello e Julia Bernart incorporam suas personagens com intensidade, numa entrega emocional potente. São trajetórias e formações diferentes que, em vez de contrastar, se complementam. Essa mistura expandiu o filme em direções que eu não teria imaginado sozinha.
Seu curta "Estação" terá baile de debutante este ano. São 15 anos e teve Cacá Diegues no júri quando concorreu em Cannes, em 2010. O que simbolizou ter disputado a Palma com esse filme e o quanto ele norteou teus rumos na direção?
O curta nasceu de um impulso muito visceral, mas ali já estavam algumas questões que sigo investigando até hoje: o deslocamento, o silêncio, a fricção entre mundos. Não acho que "Estação" tenha norteado meus rumos de forma linear, mas ele me deu coragem para continuar. Ter "Estação" selecionado para Cannes, com Cacá Diegues no júri, foi uma grande honra. Cacá é um diretor fundamental na história do nosso cinema, e encontrá-lo naquele contexto — e depois, novamente, em Biarritz — me trouxe uma alegria especial. Não apenas pelo reconhecimento, mas pela sensação de estar me aproximando de um cinema que admiro — e como não amar filmes como "Bye Bye Brasil" ou "Quando o Carnaval Chegar"? "Estação" foi o ponto de partida, e, de algum modo, sigo em diálogo com ele.
Que passos você dá na direção após "A Procura de Martina"?
Depois de "A Procura de Martina", dirigi, junto com Luís Lomenha, a série "Os Quatro da Candelária", para a Netflix. Foi uma experiência forte, por tudo o que essa história ainda escancara sobre o país. Mais recentemente, dirigi o programa "Neste Canto Eu Conto", em que Sandy entrevista cantoras convidadas. É uma série musical produzida pela Kromaki que estreia no dia 25 de junho no Multishow. Foi um mergulho em outro universo, mas a música sempre esteve muito presente nos meus trabalhos, seja como atmosfera, seja como motor emocional. Dessa vez, ela veio para o centro, e foi bonito acompanhar as conversas, as interpretações e os encontros que surgiram ali. Agora, sigo com dois projetos que quero filmar em breve: "Elas Não Sabem Tricotar" e "Tintin e Bené". Os dois têm mulheres acima dos 60 no centro da narrativa — porque envelhecer, nesse mercado, ainda é quase um ato subversivo. Sou apaixonada pelas nossas atrizes e acho que o cinema ainda explora muito pouco o que elas têm a dizer. Essas personagens carregam bagagem, humor, raiva, afeto e uma presença que me interessa muito continuar investigando.