A Palma de Ouro é do Irã, mas a vitória é do Brasil

'O Agente Secreto' de Kleber Mendonça Filho, sai do Festival de Cannes com três prêmios: mehor direção, melhor ator e Prêmio da Crítica

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O Agente Secreto

Em meio à comemoração da dupla vitória brasileira em Cannes com as láureas de Melhor Direção (Kleber Mendonça Filho) e Melhor Ator (Wagner Moura) para “O Agente Secreto”, o mais prestigioso festival do cinema mundial conferiu a Palma de Ouro de 2025 ao iraniano Jafar Panahi e seu “Un Simple Accident”. A menção de seu nome pelos lábios da atriz Juliette Binoche, a presidente do júri deste ano, simbolizou mais do que a excelência estética de uma história de revanchismo. O simbolismo central do resultado foi a liberdade. Aclamado por longas como “O Balão Branco” (1995) e “Táxi Teerã” (Urso de Ouro de 2015), Panahi foi alvo de toda a sorte de violências que o regime político de seu país foi capaz de perpetrar contra um artista. Ele foi censurado e preso, tendo feito greve de fome como reação. Seu belíssimo thriller narra um plano de vingança de um grupo de pessoas que foram torturadas a partir da ação de um agente de estado. Eles o capturam e submetem-no a um inquérito cercado de agressões. Até uma noiva em núpcias junta-se a esse ato.

Divulgação - 'Un Simple Accident', de Jafar Panahi: Palma de Ouro

“Esse filme nasceu de histórias que eu ouvi de presos como eu. Quando um estado prende um artista, ele não percebe que só faz alimentar sua imaginação”, disse Panahi na coletiva de imprensa do filme, que pode valer a ele nova reprimendas do Irã. “Eu sempre começo meus filmes com dinheiro do meu bolso, até ter algo pronto para poder mostrar e levantar o projeto. Meus amigos sempre pensam que uma hora eu vou desistir, mas só o que eu sei fazer na vida é filmar”.

Em 2010, Juliette Binoche estava em Cannes quando soube que Panahi se recusava a comer a fim de fazer com que seus governantes parassem de censurar artesãos autorais. Ela chorou com a notícia, em público. Premiar “Um Simple Accident” foi sua forma de reagir, sem deixar de lado uma estratégia narrativa ousada, que flerta com códigos do cinema político dos anos 1960 e 70 (tipo Costa-Gavras).

Jean Louis Hupe/FDC - Membros do júri e todos os premiados no encerramento do Festival de Cannes

Se de um lado a indignação reinou na entrega da Palma a Panahi e sua batalha pela democracia, do outro, o Brasil se afirmou no Palais des Festivals de Cannes pelas vias da invenção com o trabalho de Kleber Mendonça Filho, na parceria com Wagner Moura. Ambientado em 1977, em plena ditadura militar, no governo Geisel, “O Agente Secreto” traz Wagner Moura no papel de um cientista, responsável por um laboratório numa universidade pública de Pernambuco, que pesquisa energia. Ao desagradar um representante da indústria com ligações com uma empresa de energia, ele passa a ser perseguido, sob a ameaça de morte. Chega ao ponto se abrigar numa pensão que é definida como um lar para refugiados. Mesmo nessa condição, ele almeja sair do país com seu filho pequeno, ajudado pelo sogro projecionista (Carlos Franscisco) e por uma célula de resistência ao Poder instaurado, que tem a misteriosa Elsa (Maria Fernanda Cândido) como operativa.

“Acredito que é dever do Estado prover educação, assim como saúde, mas sempre que o papo de privatização entra em debate, nunca se pensa no bem do próximo, do povo, e o cinema de que eu mais gosto de fazer é aquele que discute a classe trabalhadora, numa perspectiva anticapitalista”, disse Wagner ao Correio da Manhã em Cannes.

Presença constante em Hollywood, Binoche se surpreendeu com esse recorte do passado brasileiro. Ela ganhou a láurea de Melhor Interpretação Feminina em Cannes, há 15 anos, por “Cópia Fiel”, do Abbas Kiarostami (1940-2016), iraniano como Panahi. Na dianteira do júri de 2025, ela coordenou um time plural de artistas. Dele fizeram parte a estrela americana Halle Berry; a atriz italiana Alba Rohrwacher; a indiana Payal Kapadia, que ganhou o Grand Pix cannoise de 2024 pela realização de "Tudo Que Imaginamos Como Luz"; a roteirista franco-marroquina Leïla Slimani; o documentarista e produtor congolês Dieudo Hamadi; o multiartista sul-coreano Hong Sangsoo, hoje definido como o realizador mais prolífico da atualidade; o cineasta e produtor mexicano Carlos Reygadas; e o bombado ator da série “Succession”, Jeremy Strong, dos EUA.

Um outro júri de peso coroou o realizador de Pernambuco antes de Binoche e etc.: o time de jornalistas da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci). Deram a ele – que foi repórter nos anos 1990 e 2000 - o Prêmio da Crítica. Segundo a avaliação da associação, “O Agente Secreto” tem uma generosidade e épica. “Eu ainda estou descobrindo o filme que eu fiz, embora esteja bem satisfeito com ele, e ouço aqui em Cannes coisas sobre, por exemplo, uma visão de maternidade na qual não havia pensado, mas revela muito do papel forte das mulheres no que eu crio”, disse Kleber ao Correio da Manhã, logo após a projeção na Croisette.

De acordo com a justificativa da Fipresci, Kleber fez um filme que permite digressão e oferece diversão e humor ao evocar uma história rica, estranha e profundamente preocupante de corrupção e opressão. É “um filme que faz suas próprias regras, que é pessoal, mas universal, que leva seu tempo e mergulha você em um mundo... o mundo do Brasil governado pelos militares em 1977 e o mundo das pessoas boas em tempos ruins”. Ele ainda recebeu o Prix Des Cinémas d’Art et Essai. É um diploma que celebra o apelo do longa para o mercado arthouse (jargão para salas de cinemas de arte). Tornou-se, assim, o longa mais premiado desta competição.

Divulgação - Sentimental Value: Grande Prêmio do Júri

Outro título que sai de Cannes em alta é “Sentimental Value” (“Affeksjonsverdi”), de Joachim Trier, inscrito via Noruega. Nele, o titã Stellan Skasrgard é um cineasta que tenta convencer a filha atriz (Renate Reinsve) a estrelar um roteiro que espelha o suicídio da mãe dela. A irmã da tal estrela tenta moderar os conflitos dos dois, que cresce quando o realizador chama uma vedeta americana (Elle Fanning) para protagonizar um argumento relativo às suas crias. Renate tem sequência devastadoras para si, numa estrutura narrativa que sufoca a cada revelação.

“Escolho filmes que discutam a dramaturgia da falta do diálogo, hoje tão presente na sociedade”, disse Renate ao Correio da Manhã.

Divulgação - Nadia Melliti: melhor atriz por 'La Pétit Dernière'

Na categoria de Melhor Interpretação Feminina, Cannes coroou Nadia Melliti, concedendo a ela uma (merecida) distinção por “La Petite Dernière”. Seu desempenho ajudou para que o filme recebesse ainda um outro troféu, respeitado politicamente por seu simbolismo nas lutas LGBTQIAPN+: a Queer Palm. Esse prêmio teve um júri à parte, que contou com o cineasta mineiro Marcelo Caetano (de “Baby”). Eles coroaram a estética delicada da diretora franco-tunisiana Hafsia Herzi. Sua protagonista, a estudante de Filosofia Fátima, vivida por Melliti, precisa encontrar estratégias para desviar das opressivas tradições de sua cultura familiar ao se abrir para o chamado do desejo.

Na escolha do Prêmio de Melhor Roteiro, venceu “Jeunes Mères”, dos sempre laureados Luc e Jean-Pierre Dardenne, irmãos que já ganharam a Palma um par de Vezes (por “A Criança” e por “Rosetta”). Venceram agora por seu trabalho mais esperançoso, centrado nas histórias de cinco mães bem jovens, que engravidaram sem ter recursos para sustentar seus bebês. Um centro de acolhimento é o abrigo que as aproximam.

Divulgação - Ressurrection: Prêmio Especial do Júri

Numa triagem de experimentos visuais, Binoche e parceiros criaram uma láurea especial que foi entregue ao chinês “Resurrection”, de Bi Gan, que revisita o passado do cinema a partir de uma fábula sobre o Tempo. Flertaram com a transcendência ao premiarem “Sirât”, do galego Oliver Laxe, que parte de uma rave no Marrocos para contar a cruzada de um pai para poder resgatar a filha. Laxe venceu em empate com “Sound of Falling”, de Mascha Schilinski, que faz um painel de sororidades na Alemanha.

Divulgação - Sirât: Prêmio do Júri

Divulgação - Sound of Falling: Prêmio do Júri

Paralelamente às deliberações de Binoche e seu povo, o júri da mostra Un Certain Regard, encabeçado pela cineasta e fotógrafa britânica Molly Manning Walker, fez a festa da América Latina ao coroar um dos achados do festival, egresso do Chile: o drama “La Misteriosa Mirada del Flamenco”, sobre o contágio da Aids. Diego Céspedes dirige essa recriação da indústria de mineração chilena nos anos 1980 sob a ótica de um cabaré de mulheres trans e travestis que sofre com o contágio de uma doença (então desconhecida), chamada de Peste.

Divulgação - La Misteriosa Mirada Del Flamenco

Houve ainda um Prêmio Paralelo de Molly & Cia. para o colombiano “Um Poeta”, de Simón Mesa Soto, da Colômbia, no qual um aspirante a Anacreonte reencontra a fé no verso. A coprodução luso-brasileira “O Riso e a Faca” rendeu uma láurea de interpretação para a atriz cabo-verdiana Cleo Diára.

 

Criado há uma década para celebrar a diversidade da não ficção que circula por Cannes, o troféu L’Oeil d’Or, a Palma da não ficção, foi entregue a “Imago”, do checheno Déni Oumar Pitsaev. O cineasta é o novo proprietário de um pequeno lote de terra em um vale isolado na Geórgia, na fronteira com a Chechênia, de onde foi exilado desde a infância. Ele chega ao local e planeja construir uma casa que contrasta fortemente com os costumes locais. É uma fantasia que reacende suas memórias e as de seu clã, que só sonha com uma coisa: casá-lo! Ao abrir o peito e confessar os abusos de seus parentes, o cineasta esgarçou fronteiras entre memórias afetivas e ditames políticos.

Uma das seleções paralelas mais disputadas de Cannes, a Quinzena de Cineastas concedeu um prêmio de júri popular a um filme do Iraque, que sai da Croisette com status de potencial concorrente ao Oscar: “The President’s Cake”, de Hasan Hadi. Ele recebeu ainda a Caméra d’Or, o troféu concedido a longas de estreia. O filme recria a década de 1990, quando Saddam Hussein (1937-2006) obrigava o povo de seu país a celebrar seu aniversário como se fosse uma festa cívica. Uma garotinha paupérrima é obrigada a fazer um bolo para seu professor, no festejo que sua escola fará para o líder iraquiano. Sem dinheiro para comprar ovo, fermento e farinha, ela sai pelas ruas atrás dos ingredientes, carregando seu galo de estimação em sua jornada.

Terminadas as funções de Cannes, o circuito mundial das grandes mostras segue via Suíça com o Festival de Locarno, agendado de 6 a 16 de agosto, com curadoria de Giona A. Nazzaro. O júri lá será presidido pelo cineasta cambojano Rithy Panh e o troféu honorário será confiado a Jackie Chan.