Épico da lusofonia bem recebido na Croisette
Coprodução Brasil / Portugal com direção do lisboeta Pedro Pinho e elenco multinacional, 'O Riso e a Faca' pode render prêmios ao cinema nacional e ao lusitano no fecho da mostra Un Certain Regard
Paisagens da Guiné-Bissau fotografadas pelo cearense Ivo Lopes Araújo se agigantaram poeticamente no Palais Des Festivals de Cannes na passagem de "O Riso e a Faca" pela mostra Un Certain Regard, uma das vitrines mais disputadas de Cannes, que anuncia sua premiação nesta sexta. O cineasta lisboeta Pedro Pinho e a produtora carioca Tatiana Leite, da Bubbles Project, emplacaram mais do que um hit na Croisette deste ano: consagraram um épico lusófono. São 211 minutos de reflexões sobre raízes e êxodos, desenraizamento e pertença. Tem ecos d'África(s), do Brasil e da "terrinha" numa jornada que fala de origens e de futuros possíveis para povos que, unidos por uma língua, precisam superar os ranços do pacto colonial.
"Fazendo esse filme eu percebi que em Portugal existe África, existe a diáspira, e descobri que em Bissau eu posso ser visto como branco", explica um dos destaques do elenco, Jonathan Guilherme, ex-atleta de vôlei paulista (de Aracatuba) que trocou as quadras pela arte e hoje é poeta em Barcelona, onde mora.
Na trama, seu personagem tem de driblar as dinâmicas do capitalismo em meio ao périplo de um engenheiro europeu (vivido por Sergio Coragem) que caça lastros identitários de uma cultura branca ocidental que se manchou de sangue ao longo de séculos. Ao lado de Jonathan, a atriz cabo-verdiana Cleo Diára, uma das protagonistas, também fala em aprendizados ao rever a feitura de "O Riso e a Faca".
"É um filme sobra a solidão de uma mulhee na sociedade patriarcal. Cabo Verde é minha água, meu berço, mas, aos 9 anos, fui pra Portugal. Não demorei a perceber que as primeiras pessoas a despertar da cama quando começa o dia são as mulheres negras, as vós, as mães, as empregadas", disse a atriz.
Cleo e Jonathan foram um triângulo de perseverança na trama de "O Riso e a Faca" com Sérgio, ator que é português. Ele já era conhecido da cinefilia francesa, da Côte d'Azur (o perímetro onde fica Cannes) por "Verão Danado" (2017) e "Fogo-Fátuo" (2022). Seu desempenho sob a batuta de Pinho, contudo, é algo de visceral.
"Pinho mostra o desequilíbrio que este mundo criou ao longo da História ao retratar pessoas à procura do amor", diz Sérgio. "A solidão do meu personagem é o reflexo de uma aparente possessividade que se encontra na iminência de uma conclusão".
Responsável pela produção de filmes premiados como "Regra 34" (Leopardo de Ouro em Locarno) e "Puan" (Melhor Roteiro em San Sebastián), Tatiana sai de Cannes com o prestígio da Bubbles referendado pelos elogios colhidos por "O Riso e a Faca" em várias línguas.
"Estar em Cannes é me reconectar com a minha cinefilia. Aos 15 anos eu já pensava sobre os filmes ganhadores das Palmas de Ouro com fascínio. Em 2005, vi 'A Criança', dos irmãos Dardenne, numa sessão às 8h, e saí dela encantada. Produzir filmes que possam fazer parte desse festival, hoje, é uma ressignificação interessante", diz Tatiana, que produziu o cult brasileiro "Benzinho", um ímã de troféus.
Existe brasilidade latente em "O Riso e a Faca", que tira seu título da obra fonográfica do baiano Tom Zé. Existe africanidade e lusitanidade também. No enredo que Tatiana coproduziu, filmado por Pinho, sob a luz de Ivo Lopes, Sérgio viaja para uma metrópole da África Ocidental. Vai trabalhar com egenharia ambiental para uma ONG, na construção de uma estrada entre o deserto e a selva. Ali, envolve-se numa relação íntima mas desequilibrada com dois habitantes da cidade, Diára e Gui. À medida que adentra nas fricções neocoloniais desses expatriados, esse laço frágil torna-se o seu último refúgio para escapar da barbárie.
"É uma criação coletiva que ainda está a me transformar na discussão de que como se supera algo que culturalmente nos foi dado em nossa nascença como identidade", diz Pinho, que foi laureado com o Prêmio da Crítica na Quinzena de Cannes em 2017 por "A Fábrica de Nada". "A pergunta aqui é: o que é isso que dizem que eu sou".