Christian Petzold através do espelho
Grife autoral de maior ascensão da Alemanha hoje, o realizador arrebata a Quinzena de Cannes com 'Miroirs Nº 3', reflexão sobre identidade nas raias da tensão
Confirmando certezas de excelência desenhadas desde o anúcio da seleção de Cannes, em meados de abril, "Miroirs Nº 3" virou um acontecimento estético no festival em 2025. Várias mostras o querem, redes de TV o almejam e grandes plataformas digitais sabem seu potencial, mesmo que não esteja na briga pela Palma de Ouro e, sim, na Quinzena de Cineastas. Seu apelo vem da assinatura criativa do artesão autoral alemão Christian Petzold, que vem renovando a indústria audiovisual germânica. Cults como "Em Trânsito" (2018) e "Fantasmas" (2005) são alguns de seus maiores acertos. Paula Beer, sua diva, estrela seu trabalho mais recente (quiçá o mais potente).
Ela vive uma jovem estudante de piano que se envolve em um acidente de carro no qual seu namorado morre. Milagrosamente, ela sobrevive ilesa ao acidente e é acolhida por uma família. Nesse clã, encontra conforto e apoio para retomar sua vida, mas, com o tempo, percebe que há algo errado com as pessoas que a receberam aos mimos. Suspeita-se de uma estranha projeção de expectativas em "Miroirs Nº 3", numa relação especular de perigo.
"O afeto nos dá uma identidade de pertencimento", disse Petzold ao Correio da manhã num papo via telefone, durante a produção de "Afire" (2023), seu último longa, que ganhou, entre muitos troféus, o Grande Prêmio do Júri da Berlinale e a láurea de Melhor Filme no Festival de Palic, na Sérvia.
Nascido na cidade de Hilden, na região da Renânia, ele iniciou em 1988 uma das carreiras mais sólidas de sua pátria entre realizadores que viraram grife. "Undine" (laureado com Prêmio da Crítica na Berlinale de 2020) e "Jericó" (indicado ao Leão de Ouro em 2008) consolidaram sua notoriedade como cineasta com verve de autor.
"Discutir identidade, a partir do cinema, é um processo antigo, que eu vejo até em Hitchcock", disse Petzold ao Correio. "A Alemanha é um país assolado por uma culpa histórica que nos é imputada pelo que se passou durante o nazismo. Mas durante os bombardeios que se seguiram ao fim da II Guerra, em 1945, destruíram não só nossos prédios: acabaram com a nossa cultura, com a nossa moral e com a nossa ética. Acabaram com a nossa sensação de pertencimento. Eu faço parte de uma geração de diretores que busca as histórias que construíram essa grande História em que nos rodeamos de fantasmas. Por isso, nos meus filmes, há personagens ausentes, pessoas que desaparecem, mas deixam seu espectro".
Embalado pelo hit "In My Mind", do grupo vienense Wallners, o novo longa de Petzold estreou no Brasil via Imovision. A distribuidora de Jean Thomas Bernardini foi responsável por trazer ao Brasil os cults anteriores desse artesão autoral germânico. Alguns deles foram lançados na grade da plataforma digital da distribuidora, o Reserva Imovision - e seguem por lá: "Phoenix" (2014), "Yella" (2007), "A Segurança Interna" (2000) e o já citado "Jericó". São longas que ilustram sua relação de intertextualidade com a literatura, que se depura a cada novo título. Um dos primeiros trabalhos dele a chegar aqui foi "Bárbara" (2012), que está no cardápio da Bergamo Film Meeting. Há como assisti-lo aqui via streaming, na MUBI
"Meu esforço é tirar a História de uma inércia arquetípica, é proteger os personagens do lugar comum, é fomentar uma nova perspectiva para a imagem", disse Petzold, em Berlim. "Num universo repleto de narrativas de pessoas que precisam se esconder e se reinventar, construído pelo cinema ao longo de décadas, o amor aparece como um norte para os personagens. Hoje, eu percebo o mundo à minha volta, e sua sensibilidade, pelos ruídos que ele produz. Quando um cineasta procura locações onde filmar, ele, de costume, preocupa-se com o visual e busca imagens de referência, confiando ao olhar o desenho de sua narrativa. Já eu, preciso ouvir o que esse lugar expressa, para que ele me conte sua história".
O Festival de Cannes segue até o dia 24 de maio.