Godardmania aflora em Cannes
'Nouvelle Vague', de Richard Linklater, alimentou a saudade que a Croisette e a cinefilia de todo o planeta sentem do realizador de 'Acossado', que entrou para a História via semiologia
Desde que Jean-Luc Godard (1930-2022) saiu de cena, num suicídio assistido, nenhum Festival de Cannes se passa sem menção ou tributo ao semiólogo supremo da língua francesa nas telas, com direito até a um tributo, contagiante, de um artesão indie dos EUA: Richard Linklater. Filme nenhum, entre as centenas de atrações já exibidas pela maratona audiovisual da Côte d'Azur em 2025, comoveu mais a plateia do que "Nouvelle Vague", exibido no sábado.
Nele, o diretor dá um 360° na História do século 20, pelas vias da cultura cinematográfica, a fim de retratar o set de filmagem de "Acossado" (1960). Foi ali que o crítico Godard passou ao posto de realizador, numa transformação que abriu precedente para uma nova forma de editar imagens e de usar a filosofia como eixo da construção de planos.
Apoiado num requintado visual em PB, assegurado pelo diretor de fotografia David Chambille, "Nouvelle Vague" bagunçou apostas acerca dos potenciais ganhadores das láureas de Cannes com o trabalho de direção mais maduro de Linklater. Ele entrou numa vibe de revisar os feitos de artistas de veia indomável como o compositor Lorenz Hart (1895-1943), personagem central de "Blue Moon", que lançou na Berlinale, em fevereiro. Agora é Godard. Um Godard moleque ainda, vivido (com ironia) por Guillaume Marbeck.
Aos 29 anos, ele era um escriba de temperamento ferino da "Cahiers du Cinéma" (a bíblia da intelectualidade cinemeira) quando resolveu rodar seu primeiro longa, para não ficar para trás dos colegas François Truffaut e Claude Chabrol, interpretados por Adrien Rouyard e Antoine Besson. Os dois, ao lado da belga Agnès Varda (1929-2019) inventaram a tal Nova Onda, o movimento que deu status de modernidade ao cinema francês, ao propor que cada exercício fílmico fosse uma revolução em si, na forma e no conteúdo. A centelha revolucionária de Godard se acende com a ideia de uma história de amor entre uma jovem de classe média metida a jornaleira - figura encarnada por Jean Seberg, que, no longa visto em Cannes é encarnada por Zoey Deutch - e um malandro com pinta de gangster - Jean-Paul Belmondo, vivido esplendidamente por Aubry Dullin.
A cada nova tomada, Godard enlouquece a equipe, inflama o mítico fotógrafo Raoul Coutard (Matthieu Penchinat) e tira Seberg da zona de conforto.
Fortíssimo concorrente à Palma dourada, "Nouvelle Vague" é um dos (muitos) gestos de reverência ao legado godardiano.
Na Europa e nos EUA, festivais de narrativa documental do Velho Mundo e as salas de exibição ditas arthouse da França hoje se esforçam para encontrar um espaço para o curta "Scénarios", cujo roteiro foi deixado semifinalizado pelo cineasta, antes de sua partida. Exibido em Cannes, o filme é um tratado sobre a gênese e a decadência da sociedade ocidental, construído a partir de imagens de arquivo, documentos e referências à espirial do DNA. Enquanto essa pequena, mas poética produção busca espaço em tela, streamings de todo o mundo abrem brecha para sua forma autoralíssma de narrar.
Repleto de ironia em seu script, "Scénarios" é uma experimentação filosófica de 18 minutos, concluída na véspera de ele morrer, há quase três anos. Acompanha o projeto um vídeo de 34 minutos no qual o próprio Godard apela para uma mixagem de arquivos a fim de deixar instruções acerca do modo como "Scénarios" deveria ser terminado e exibido.
"Palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é algo além, é um conjunto de procedimentos de como empregamos signos. O problema é que as pessoas articulam esses signos sem a coragem de fantasiar o que aconteceria se as convenções fossem usadas de outra maneira", disse Godard ao Festival de Cannes de 2018, pouco antes de receber uma Palma de Ouro Honorária por "Imagem e Palavra", seu derradeiro longa.
Essas palavras ditas por ele à Croisette não se enquadraram num processo convencional de entrevista, ao vivo. Ele falou com Cannes de seu escritório, na Suíça, usando Facetime, num papo em que elogiou a herança cultural de entrevistados da Rússia, de Portugal e do Brasil e lamentou o fato de todos falarem em Inglês. "Quem nasce na Itália é italiano. Quem nasce na China é chinês. Quem nasce na França é francês. Mas quem nasce nos Estados Unidos leva o gentílico de americano. A onipotência deles é tanta que eles não levam o nome do país e, sim, do continente", disse o cineasta numa coletiva de imprensa nos anos 1990.
No império do efêmero que o mundo midiático virou sob o garrote das fake news, o cineasta franco-suíço responsável por injetar poesia na semiologia, saiu de cena fazendo de sua partida um espetáculo transgressor, desafiando o Tempo, deixando como legado 118 filmes (entre curtas e longas) e mais 12 produções para a TV (entre séries e especiais).