Cacá Diegues e o inventário de uma saudade
O produtor Diogo Dahl passa em revista os feitos do Cinema Novo ao exibir em Cannes .doc sobre o cineasta brasileiro, que completaria 85 anos nesta segunda
Ao cantar parabéns para o diretor e imortal da ABL Cacá Diegues (1940-2025) - que comemoria seus 85 anos nesta segunda - em meio à projeção de "Para Vigo Me Voy!" no Festival de Cannes, o produtor Diogo Dahl vai celebrar, de lambuja, o legado de seus dois pais, ambos cineastas e pensadores da identidade brasileira: Gustavo Dahl (1938-2011) e Nelson Pereira dos Santos (1928-2018).
Gustavo, realizador do cult "O Bravo Guerreiro", de 1968, fez história sobretudo na gestão e na política cultural, ao entrelaçar sua trajetória criativa com a do cinema nacional moderno, forjando um projeto para retirar o audiovisual brasileiro da condição colonial, e evitar qualquer subalternidade à Europa e a Hollywood.
Essa tal modernidade foi Nelson quem fundou, com "Rio 40 Graus", em 1955, reafirmando seus códigos em tudo o que rodou e lançou até "À Luz Do Tom", em 2013, com direito a marcos estéticos como "Vidas Secas", um dos filés da edição de 1964 de Cannes. Foi um integrante com status de mentor para o Cinema Novo, movimento de vanguarda de prestígio mundial, que, nesta tarde, será louvado na tela da Croisette.
"Cacá está lá junto com Nelson, Glauber Rocha Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman... Ele está entre os maiores", diz Diogo, ao Correio da Manhã, às vésperas de levar "Para Vigo Me Voy!" ao Palais des Festivals, ao lado da dupla de cineastas que moldou o longa, pautados por saudades de Diegues: Karen Harley e Lírio Ferreira.
Filho da atriz-diretora Ana Maria Magalhães, Diogo Dahl correu para finalizar o .doc logo após a morte de Cacá, que partiu em fevereiro, deixando um longa inédito, "Deus Ainda É Brasileiro", em fase de finalização. Estruturado poeticamente para ir além da dimensão verbete de Wikipedia típico dos relatos biográficos, "Para Vigo Me Voy!" foi produzido numa conjunção entre Coqueirão Pictures, Globo Filmes, GloboNews, Sinédoque, Dualto Produções e Raccord Produções.
Em suas entrevistas, consideradas os derradeiros desabafos do diretor de "Xica da Silva" (visto por 3,1 milhões de pagantes em 1976), o artesão autoral alagoano falou sobre seus filmes, suas angústias políticas, brasilidade e vida. As falas dele se misturam com trechos de seus longas, embalados por trilhas sonoras, compostas por Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Cacá amalganou-se com eles ao largo de toda a sua obra.
Em 1964, quando leva seu longa de estreia, "Ganga Zumba", à Semana da Crítica de Cannes, Cacá se articula com o núcelo de artistas do Cinema Novo a fim de deflagrar uma revolução fomal nas representações da America Latina nas telas do mundo. À época, Glauber estava lá, brigado pela Palma de Ouro com "Deus e o Diabo na Terra do Sol", ao mesmo tempo que Nelson exibia "Vidas Secas" à Croisette.
"Tem muita influência de Nelson no começo da carreira de Cacá. De certa maneira, seu filme 'A Grande Cidade' é um descendente de 'Rio 40 Graus'", diz Diogo, que foi um dos produtores de "Cinema Novo", de Eryk Rocha, .doc ganhador do troféu L'Oeil d'Or (a Palma da não ficção) em Cannes, em 2016.
Nele, Cacá tambem batia ponto, num jorro de cenas ressignificadas sob uma base poética, mas de tom memorialista. Espera-se algo nessa toada, de Karen e Lírio, na sessão de "Para Vigo Me Voy!".
"Os grandes momentos da nossa cultura, que eu busco resgatar, só tiveram a força e o alcance que tiveram porque foram construídos coletivamente. Isso vale pro cinema, mas também para a música, a literatura, as artes visuais", disse Dahl.
Até dezemebro, ele põe "Para Vigo Me Voy!" para circular, assim como uma leva de outros projetos:
"A gente está vivendo um momento muito legal. Foram cinco filmes lançados em um ano. Há seis meses, lançamos 'O Menino d'Olho d'Água' no (festival holandês) IDFA, enquanto '3 Obás de Xangô', recebia os prêmios de melhor .doc no Festival de Rio, Mostra de São Paulo e Tiradentes. Agora temos 'Para Vigo Me Voy!' em Cannes. Para frente, temos um longa de ficção pra rodar em breve".
Cannes segue até o dia 24, quando o júri presidido pela atriz Juliette Binoche anuncia os premiados, com destaque para a produção a ser agraciada com a Palma de Ouro. O Brasil está no páreo com "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho.