Michel Ciment, o incriticável
Mercado editorial francês preserva o legado teórico do Midas da arte de escrever resenhas de filmes e de pensar o papel político (e poético) do audiovisual
Cannes reage à saudade que tem de Michel Jean Ciment (1938-2023), o jornalista considerado um dos maiores críticos de cinema de toda a Europa, jogando holofotes sobre sua prosa teórica. Cada cantinho do balneário onde se comprem livros abre um espaço para seu "Une renaissance américaine: 30 entretiens avec des cinéastes", amarradinho com conversas que ele teve com lendas dos EUA. Conversar era um verbo que ele transformou em arte - e num convite ao aprendizado - em seu trabalho no festival mais prestigiado do mundo: pilotar masterclasses com lendas da direção e da atuação.
Paralelamente a seus serviços prestados à imprensa, ele entrevistava estrelas na Croisette, em papos imortalizados nos acervos do festival, nos quais Quentin Tarantino, Malcolm McDowell e Sidney Pollack se soltavam no balanço de sua fala.
Uma edição recente de seu "Jane Campion On Jane Campion", sobre a diretora de "O Piano" (Palma de Ouro de 1993), foi recolocado nas livrarias da França, assim que Cannes inaugurou sua 78. edição, na terça-feira. O mesmo se passou com "Kubrick", o best-seller de Ciment, com foco no realizador de joias como "De Olhos Bem Fechados" (1999), que teve prefácio do cineasta Martin Scorsese, um dos xodós do resenhista. É um tijolaço com 400 ilustrações, incluindo 150 coloridas, muitas delas raras ou até mesmo inéditas. Seu texto tem o traço investigativo característico de seu autor.
Iracundo diante da conquista da Palma de Ouro de 2010 por Apichatpong Weerasethakul e seu "Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas", Ciment ensaiou uma boca de urna tardia, na porta do Palais des Festivals de Cannes, para que seus colegas da imprensa fossem às salas de exibição assistir a seu filme favorito da competição daquele ano: "A Princesa de Montpensier", de Bertrand Tavernier (1941-2021). Agiu igualzinho na Berlinale 2017, depois de ver "Return to Montauk", de seu amigo alemão Volker Schlöndorff. Partidário da ideia expressa no título de um clássico de Bud Spencer e Terence Hill - "Quem Encontra Um Amigo Encontra um Tesouro" -, Ciment vibrou ao saber que o moçambicano Ruy Guerra havia finalizado "Quase Memória", em 2015. Foi ao céu ao ouvir o nome do alagoano Cacá Diegues (1940-2025) entre as atrações da Croisette de 2018, onde o brasileiro estreou seu "O Grande Circo Místico". Apesar de exigente, Ciment era só coração... no tanto de cérebro que dedicou a resenhar filmes, de 1963 até serenar, aos 85 anos.
Em seu obituário, Cannes referiu-se a ele como "um espírito livre de insaciável curiosidade, incorporando o conceito de cinefilia". Seus escritos eram arejados pelo amor pela telona, num respeito seminal por Hollywood, que vinha desde 1944, quando ele (filho do alfaiate judeu húngaro Alexander Cziment) testemunhou as ações das tropas estadunidenses para livrar a França da ocupação nazista. O impacto do episódio fez com que ele se interessasse pelo ethos da cultura americana e fizesse dos filmes egressos de lá objetos das críticas que escreveu para alguns dos veículos de imprensa de maior prestígio da Europa. A "Positif", revista fundada em 1952 e celebrizada como concorrente direta da "Cahiers du Cinéma" (a Bíblia do audiovisual), foi a plataforma mais prolífica de suas ideias. Começou a escrever lá em 1963. Três anos depois, em decorrência do sucesso de um artigo seu sobre Orson Welles (1915-1985), virou editor do periódico, sem nunca deixar o posto.
"Vale a pena você assinar a gente, até porque, na assinatura, ganha de brinde um DVD", dizia ele, todo orgulhoso, a vender seu peixe.
Com carinho paterno, cuidou da edição da revista até a pandemia, sempre exercitando seu interesse em perfilar cineastas com potência para criar uma obra própria e almejar um status de maestria, como o italiano Nanni Moretti, a belga Agnès Varda (1928-2019) e o americano Tim Burton. Parte desses perfis foram compilados pelo próprio Ciment em "Positif 50 years: Selections from the French film jornal", lançado pela editora do The Museum of Modern Art, em 2002. Aliás, ele lançou livros sem parar nas últimas cinco décadas, a partir de 1973, ano de lançamento de seu primeiro sucesso nas livrarias: "Kazan par Kazan". A arte de entrevistar sempre foi o forte de Ciment, vide o livro "Passeport pour Hollywood: Entretiens Avec Wilder, Huston, Mankiewicz, Polanski, Forman & Wenders", de 1992.
Respeitado por sua gramática primaveril e pela memória prodigiosa, tinha opiniões ferinas. Embirrava com a escolha de Sean Penn como presidente do júri de Cannes de 2008, dizendo: "Os filmes que esse cara dirigiu são péssimos". Era bem implicante com a figura (e os filmes) do diretor Jim Jarmusch, de "Daunbailó" (1986). Dava sensos controversos, como dizer que considerava "Gomorra" (2008), de Matteo Garrone, melhor do que "Z" (1969), de Costa-Gavras. No entanto, provocações à parte, respeitava a magia que um bom filme gera ao ser projetado na telona. Foi muito respeitado pelo amor que tinha pela dimensão analgésica do discurso cinematográfico.