CRÍTICA / FILME / HOMEM COM H: Não existe pecado do lado de baixo da lealdade

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Jesuíta Barbosa vive Ney Matogrosso em 'Homem Com H'

Lá se vão quase 20 anos desde que Esmir Filho tornou a Semana da Crítica de Cannes mais leve com “Alguma Coisa Assim”, um curta-metragem de 2006, rodado em duo com Mariana Bastos, centrado na ideia de que parceria é um bem inalienável e inquebrantável. O tema voltou numa lógica de “despertar da primavera” em seu primeiro longa, “Os Famosos e os Duendes da Morte”. A fita o consagrou com o troféu Redentor de Melhor Filme e o Prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) do Festival do Rio 2009, além de ter arrancado aplausos em Locarno (onde disputou o Leopardo de Ouro) e na Berlinale.

O assunto “aliança” voltou à tona em seu cinema via “Verlust” (2020), com Andrea Beltrão, Marina Lima e uma baleia, e na série Netflix “Boca a Boca”, lançada em meio à pandemia. A recorrência desse debate sobre ser (e se manter) leal assegura ao cineasta paulista um status de “diretor autor” e, pelas vias dessa autoralidade afetiva, ele faz do biopic do cantor Ney Matogrosso uma requintada autopsia em corpo vivo do companheirismo.

Todas as músicas que fizeram do bardo um ícone de transgressão estão em cena em “Homem Com H”, revisitadas na voz sem par do próprio Ney, associada a uma mesmerizante performance de corpo (e alma) do ator Jesuíta Barbosa, em estado de graça. Tão ou mais provocativas do que essas canções, está um estudo sobre os laços sentimentais que Ney cria com pessoas que ama, do pai militar rígido (Romulo Braga, um colosso) ao colega de quartel que mexe com seus desejos juvenis de recruta (Augusto Trainotti), passando pelos parceiros de Secos e Molhados. Alguns o magoam - como o Cazuza interpretado delicadamente por Jullio Reis -, outros o amam de montão, como o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone).

Entre extremos, pro dia nascer feliz, o músico não esmorece, fitado em closes de cores densas da fotografia de Azul Serra, que salpica suor nas eróticas sequências de sexo, sem nunca se exceder ao limite do pornográfico, qual o francês Bertrand Bonello fez em “Saint Laurent” (2014). A direção de arte de Thales Junqueira também serve de termômetro para a elegância da narrativa de Esmir, que se aprofunda nos dilemas de seu protagonista sem deixar que a dor lhe esmague sua perseverança, nutrida no amor à Natureza e nas certezas de que gente é bicho e prazer cheira bem.