Fiel à sua cria, a "Cahiers du Cinéma", o periódico mais respeitado da cultura audiovisual desde 1951, dedicou sua capa de março ao novo exercício autoral do catalão Albert Serra, o ensaio documental "Tardes de Soledad", que iniciou carreira comercial em sua terra natal, a Península Ibérica, no último fim de semana, abrindo espaço Europa adentro.
A relação entre a revista e o diretor passou a ser de amor depois que seu coletivo de críticos elegeram o longa-metragem anterior dele, "Pacifiction" (hoje encontrável na plataforma MUBI), "O" filme de 2022. Essa estampa de qualidade do mais respeitado veículo de imprensa do mundo cinéfilo transformou o que era uma potente dramaturgia (sobre a ressaca política de um mundo de ideologias afogadas) num acontecimento.
A obra de Serra virou aquilo que revistas como a "New Yorker" chama de talk of the town, ou seja, "O" assunto da cidade. Muitas vezes essa bênção francesa da "Cahiers" erra, sacralizando bezerros de ouro. Em outras (as enquetes em que figuraram Bertrand Mandico, Maren Ade, os Irmãos Safdie, Patricia Mazuy, Hong Sangsoo, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho), os acertos foram reconhecidos e atestados pela História, como se vê agora com o diretor espanhol. Seu .doc chega à França com status de obra-prima.
Encarado desde a sua primeira exibição pública, em setembro, no Festival de San Sebastián, como um gesto de ousadia e um convite à provocação, "Tardes de Soledad" fez jus à controvérsia que despertou ao receber a Concha de Ouro de 2024, por sua excelência de linguagem. Venceu uma acirradíssima disputa no País Basco com um objeto de estudo dos mais indigestos para os novos tempos: a tradição da tourada.
Ao seguir o dia a dia de um toureiro peruano visto como celebridade em seu ofício, Andrés Roca Rey, o realizador de cults como "A Morte de Luís XIV" (produção de 2016 hoje alugável na Prime Video, da Amazon) combate o machismo e também a naturalização da violência contra os animais inerentes àquela tradição ibérica. Sagrou-se ganhador de um evento que falou de finitudes (de corpos idosos, de velhos costumes) do começo a fim.
"Como meu fotógrafo, Artur Tort, também é um montador, tive a "Como meu fotógrafo, Artur Tort, também é um montador, tive a chance de explorar as imagens que rodamos com respeito à solidão das pessoas que estão nas arenas de touros, mas sem romancear aquele costume", disse Serra em resposta ao Correio da Manhã em sua coletiva em Donostia, o nome de San Sebastián em basco.
Serra nunca havia feito um longa de não ficção antes. Sem fazer juízos de valor, esse artesão da imagem registra uma série de "combates" travados por Roca Rey. Em planos longos, com muitos closes, o diretor desconstrói o simbolismo de virilidade que cerca os toureiros, captando frases de fãs como "seus colhões são maiores do que essa praça", que, ouvidas no contexto estético do longa, ganham tom irônico.
"Tenho formas de pensar a linguagem que passam por uma herança de meu país nas telas", disse Serra ao Correio, antes de atuar como jurado da Berlinale 2024, na Alemanha. "Sou, sim, um cineasta espanhol, pela minha gênese pessoal, mas o meu cinema não está preso a paradigmas nacionais, nascendo de uma troca com outras pátrias, no desejo de expressar o mundo a partir de uma inquietação formal que não se defina meramente pela palavra, ainda que esta, quando aparece em cena, tem relevância, um sentido, um efeito".
As páginas da "Cahiers du Cinéma" de março analisam a forma peculiar de criação de Serra, na ficção. "Eu não uso o roteiro com os atores. Eu converso com eles, cena a cena, para tentar que eles se guiem pelo sentimento que cada sequência proposta sugere", disse o cineasta em San Sebastián.
"Pacification", acessível no www.mubi.com, prova que existem várias moléstias na dramaturgia de Serra e o tédio é uma delas, quase sempre acompanhado de um certo esnobismo maquinal, ou seja, uma arrogância em relação aos processos de interação social e de trocas financeiras. Assim sendo, lirismo é algo que não lhe cabe, ainda que exista algo de lúdico no verdume das florestas da Polinésia Francesa onde a trama se passa. Mas a preferência de Serra é pelo que existe (ora) de arenoso e (ora) de lamacento na alma do personagem central daquele Éden em falência: um misantropo alheio à perseverança humana chamado De Roller, Alto Comissário da República no Taiti.
Para viver a figura enigmática, que é galã e monstro no mesmo corpo, operando como Jekyll pro neoliberalismo e Mr. Hyde para o discurso ecológico, Serra convocou um ator em estado de graça: Benoît Magiel. Premiado em Cannes, em 2001, por "A Professora de Piano", em duo erótico com Isabelle Huppert, Magimel transforma De Roller num Exu que flana por diferentes mundos (o de governantes poderosos, o de turistas milionários e o bas-fond do comércio sexual) buscando equilíbrio.
Mas a ameaça de um conflito atômico, somada à fagulha de um benquerer que parecia impossível, vai tirá-lo do ponto morto. Seu despertar revela, com o olhar decadentista de Serra, que o bárbaro é sempre aquele que se civilizou. O mundo dos toureiros exposto em "Tardes de Soledad" segue a mesma lógica.