Antes do Oscar, houve uma vez um Urso
Indicada a três estatuetas da Academia de Hollywood, 'Ainda Estou Aqui' estreia em telas da Alemanha cercado de badalação na Berlinale, onde Walter Salles foi premiado em 1998
Templo cinéfilo da capital alemã, situado no nº 30 da rua Rosa-Luxemburg, a sala Babylon agendou para 2 de março - domingo de carnaval e também dia da cerimônia do Oscar - uma projeção de "Ainda Estou Aqui". Será um esquenta para a estreia germânica do maior sucesso de Walter Salles. Indicado a três estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Filme, Atriz e Filme Internacional), o longa-metragem não foi incluído no maior festival daquele país, a Berlinale, nem Walter foi lá.
No entanto, falou-se de seu êxito global - com uma arrecadação estimada em US$ 25 milhões - em múltiplos momentos da maratona, que termina neste domingo. Assim que o filme brasileiro "O Último Azul", de Gabriel Mascaro, disparou por lá, como favorito ao Urso de Ouro, os bons ventos de nosso cinema, soprados pelos pulmões de Waltinho, tornaram-se um assunto recorrente em terras berlinenses.
Na última quarta, Rodrigo Teixeira (da RT Features), um dos produtores do drama dirigido por WS, protagonizado por Fernanda Torres, esteve em concurso pelos troféus da Alemanha com um outro título: "Kontinental '25", do romeno Radu Jude. Não demorou para que a narrativa que pode oscarizá-lo daqui há uma semana e meia viesse à tona na coletiva de imprensa de Jude. "Conforme o filme do Gabriel foi sendo aclamado e abraçado por Berlim, pelos muitos méritos que tem, o festival trouxe à tona a boa fase atual de nosso cinema, interna e externamente, e 'Ainda Estou Aqui' é parte dela", disse Teixeira ao Correio da Manhã.
Rodrigo Santoro, um dos astros de "O Último Azul", trabalhou com Waltinho no (pouco citado) "Abril Despedaçado" (indicado ao Leão de Ouro de 2001) e falou do cineasta em Berlim, a fim de ressaltar a contribuição de "Ainda Estou Aqui" à saúde financeira do nosso audiovisual. "A gente tá vivendo uma das fases mais potentes de nosso cinema, com o filme do Walter brilhando", disse o ator.
Citações como essa reforçam o legado que Waltinho construiu da década de 1980 para cá, mas foi a Berlinale que mudou seu destino, em 1998, quando um júri presidido pelo ator britânico Ben Kingsley deu a ele o Urso de Ouro, por "Central do Brasil". Estrela desse cult, Fernanda Montenegro ganhou o Urso de Prata de Melhor Atriz. Esta reportagem que relembra essa trajetória é parte de uma série de análises feitas pelo Correio da Manhã sobre possibilidade de vitória do atual fenômeno de bilheteria de Waltinho, que vendeu 5 milhões de ingressos.
"Central do Brasil" somou 1.186.859 entradas vendidas nacionalmente em sua carreira comercial, no fim dos anos 1990, e faturou cerca de US$ 22 milhões mundialmente. Hoje pode ser visto na Netflix, na Amazon e no Globoplay. Sua forma de mesclar melodrama com procedimentos documentais, amparado num olhar sobre as urgências e carências do país deflagrou o movimento chamado de A Nova Onda Latino-Americana, que revelou autoralidades (Lucrecia Martel, Pablo Trapero, Fernando Meirelles, Alejandro González Iñárritu) em variadas latitudes do continente. Em 1999, ganhou o Globo de Ouro e foi brigar por dois Oscars, o de Melhor Filme Estrangeiro e o de Melhor Atriz.
Há 26 anos, a saga da escrevinhadora de cartas Dora, do subúrbio do Rio aos confins do Nordeste, perdeu para "A Vida É Bela", do italiano Roberto Benigni. Fernandona foi preterida em favor de Gwyneth Paltrow ("Shakespeare Apaixonado"), num placar até hoje difícil de engolir. Os mimos de Berlim, contudo, fizeram sua glória.
Em 2000, Waltinho voltou à Berlinale, mas como jurado, integrando um júri presidido pela atriz chinesa Gong Li e abrilhantado pelo mestre polonês Andrzej Wajda (1926-2016). Em 2015, o diretor foi lá de novo, para exibir o documentário "Jia Zhangke, um Homem de Fenyang" e entregar o troféu honorário do festival a seu amigo alemão, o diretor Wim Wenders.
Em onze dias, o destino de Waltinho será reescrito nos EUA, mas a força de seu pretérito perfeito em Berlim estará com ele, ao colher os louros pela história da advogada e ativista Eunice Paiva (1929-2018), papel dividido entre Fernanda Torres e sua mãe, Fernandona. Em 1971, Eunice teve seu marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (vivido por Selton Mello), levado para depor por agentes armados do estado, em seus tempos de farda verde oliva. Nas décadas seguintes, ela se embrenhou numa busca pelo paradeiro dele e numa cruzada contra a tortura e os crimes do governo militar. É essa peleja que faz de "Ainda Estou Aqui" um rasga-coração por onde passa, desde sua primeira exibição, em setembro, no Festival de Veneza, onde ganhou a láurea de Melhor Roteiro.
"Minha geração chegou ao cinema após 21 anos de ditadura militar. Muitas histórias não puderam ser contadas durante esses anos de chumbo", lembra Salles, em entrevista por e-mail ao Correio da Manhã, ao explicar seu interesse em filmar a peleja de Eunice, a partir do livro "Ainda Estou Aqui", do filho dela, Marcelo Rubens Paiva. "Teria sido lógico abordá-las, mas o desastre do governo Collor no início dos anos 1990 nos obrigou a lidar com uma realidade imediata de um país novamente em crise. Quando a extrema direita começou a ganhar força no Brasil, ficou claro o quanto nossa memória dos anos de ditadura militar era frágil".