Marcelo Gomes: 'A Aids gerou medo, mas também uma reaçãode solidariedade'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

 

Premiado em Cannes há 20 anos cravados com "Cinema, Aspirinas e Urubus", o realizador pernambucano Marcelo Gomes já apresentou filmes em Veneza, Toronto e Roterdã, além de ter vencido o Festival do Rio com "Paloma" (2022), mas encontrou seu porto mais seguro na Berlinale. Concorreu ao Urso de Ouro com "Joaquim", em 2017, e passou lá ainda em .doc ("Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar") e ficção ensaística ("O Homem das Multidões", rodada em duo com Cao Guimarães). Este ano, volta à capital alemã pelo Berlinale Series Market, com os episódios de "Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente", cuja produção é da Morena Filmes (de Mariza Leão).

Carol Minêm e ele (ambos diretores da minissérie) estiveram no evento na última terça, ao lado do ator Johnny Massaro, da roteirista Patricia Corso e dos produtores Thiago Pimentel (também autor da ideia original) e Tiago Rezende. A trama é dividida em cinco capítulos, inspirando-se em casos reais ocorridos durante o boom da Aids no Brasil.

Seu enredo segue um grupo de comissários de bordo no Rio de Janeiro, liderados por um chefe de cabine gay (com HIV) que cria um esquema de contrabando de AZT (um medicamento antirretroviral). Sua meta é salvar vidas de pessoas imunodeficientes num período em que o remédio tinha sua venda proibida no país.

Na entrevista a seguir, no coração de Berlim, Gomes explica de que maneira esse investimento na teledramaturgia celebrar o verbo viver.

Quando você ouviu a palavra Aids pela primeira vez?

Marcelo Gomes: Eu vivi os anos 1980 e 1990. Na época, quando a gente ouvia falar em Aids, vinha a descrição de um monstro exterminador, alguma coisa que ia acabar com as pessoas. Eu morava no Recife quando os primeiros casos foram registrados e, na época, não se falava Aids, nem HIV. Era "peste gay", ou seja, ela já vinha com esse estigma horroroso, terrível, fascista. Eu era muito jovem quando começaram a falar disso e foi um choque para nós que estávamos começando a exercer a sexualidade. Foi um baque. Apesar disso, na vida em sociedade, toda ação gera uma reação. A Aids gerou medo, mas também uma reação de solidariedade e de afeto, que ocasionou a construção de uma rede de apoio. Essa rede fortaleceu a comunidade LGBTQIAPN .

De que maneira a dramaturgia da minissérie trabalhou com a consultoria da médica Márcia Rachid, que atende pessoas vivendo com HIV desde os anos 1980?

O idealizador da série foi Thiago Pimentel. Quando ele viu um documentário com a Márcia, que falava dessa história real, ela começou a ser a nossa consultora. Ela teve uma grande conversa com a gente. Várias experiências que teve estão na série.

A sessão consagradora de "Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente" em Berlim revela uma nova instância investigativa no seu cinema. Você é um realizador que está sempre testando fronteiras narrativas, no trânsito de formatos entre a ficção e o documentário. Pulou de um épico como "Joaquim" para um filme de amor como "Paloma". O que norteia, conscientemente, essa diversidade de registros?

Eu faço cinema de personagens. Meus personagens é que direcionam toda a narrativa. Antes de fazer cinema, eu tinha um cineclube. Lá, eu fiz da cinefilia a minha escola. As referências cinéfilas que adquiri nessa época seguem habitando minha mente. Logo, quando vou contar uma história, os elementos de cinema de gênero aparecem, mas, antes de tudo, aparece o personagem. O que eu busco no meu cinema é contar a história como o meu personagem diz que ela tem que ser contada. O "Joaquim" me pediu um épico e o "Retrato de um Certo Oriente", que lancei o ano passado, pediu uma história de imigração, de descoberta de mundo. São os personagens que me dizem como é que a história tem que ser contada.

Como os personagens guiam "Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente"?

Nessa série, a gente vai ver personagens extremamente afetivos, apaixonados e apaixonantes, que estão à procura de preservar a vida, a deles e a dos demais. No momento que o Brasil sai da ditadura e começa viver um respiro de liberdade, vem a epidemia da HIV. É nesse momento que esses personagens ficam lutando por viver. O bordão do personagem principal é "Vida!". Falamos de personagens com ânsia de viver, no momento de um conservadorismo profundo na sociedade brasileira, quase igual ao que a gente via no país há alguns poucos anos.

O que você filma agora, depois da série?

Vou fazer um filme com o Cao Guimarães, uma ficção científica, que se chama "Cabo dos Prazeres". A gente tá ainda pesquisando locação, mas devemos filmar no fim do ano ou no início de 2026. Antes, em abril, lanço o documentário "Criaturas da Mente".

Este Festival de Berlim está vendo o diretor Gabriel Mascaro bombando, favorito ao Urso de Ouro, com o sucesso de "O Último Azul". Assim como você, ele vem do Recife. É um talento egresso de Pernambuco. Como é que você encara o cinema pernambucano hoje?

No cinema pernambucano, sempre existiram ondas. Nos anos 1970, teve a onda do Super-8 pernambucano. Antes, nos anos 1920, cem anos atrás, tivemos a primeira onda dos filmes pernambucanos, com "Aitaré da Praia". Eu faço parte de um desses ciclos, mas é um ciclo que continuou. Teve o "Baile Perfumado" (no fim dos anos 1990) e, depois dele, surgiu um monte de cineasta. Estou entre eles, pois apareço aí, nesse período. Sinto que o cinema pernambucano estabeleceu-se, uma vez que produz com constância. A regularidade nos fortalece.