Daniel Filho: 'Passei a rever a vida e a relembrar que eu sou ator'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um dos cineastas de maior rentabilidade do Brasil, responsável por modernizar a TV, o diretor Daniel Filho, de 'Se Eu Fosse Você', volta a exercitar o ofício de ator

Folheando registros oficiais da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do portal Filme B acerca dos longas-metragens brasileiros que passaram da marca de 1 milhão de ingressos vendidos, o nome Daniel Filho aparece oito vezes (!) na lista, assinando a direção de fenômenos populares rodados entre os anos 1970 e os anos 2010. Passadas cinco décadas cravadas de um desses êxitos dele ("O Casal", visto por 1 milhão e 300 mil pagantes em 1975), o cineasta que virou o século com status de Midas, por fabricar um blockbuster atrás do outro, volta às telas no fim de semana que vem. Regressa agora só na frente das câmeras, atuando... e bem, num registro tão romântico quanto o de seu cult de outrora.

Com estreia marcada para o dia 30, "Vida a Vida" põe Daniel Filho no papel de Ulisses, o dono de um antiquário de onde uma funcionária, a jovem Jéssica (Thati Lopes), parte mundo afora, até Israel, para desvendar o segredo de um medalhão. Um primo distante, Gabriel (Rodrigo Simas), será seu aliado (e algo mais) nessa missão, levada às telas pela cineasta Cris D'Amato, a partir de um fino roteiro de Natalia Klein. Seu lançamento deflagra uma ciranda de filmes inéditos que têm o realizador de "Tempos de Paz" (2009) no elenco, em papéis de destaque.

"Eu estou aqui, pronto e disponível, pois quero ir embora filmando", diz Daniel, em conversa via Zoom de Nova York, com o Correio da Manhã.

No fim de 2024, o Festival de Brasília teve a chance de conferir sua participação em "A Fúria", de Luciana Mazzotti e Ruy Guerra, que compõe uma trilogia com "Os Fuzis" (1964) e "A Queda" (1978). Será visto ainda em "Resta Um", distopia de Fernando Ceylão, e "(Des)Controle", de Rosane Svartman, com Carolina Dieckmann e Ireve Ravache.

"Daniel Filho é um acontecimento na frente e atrás das câmeras", diz Rosane. "Genial e genioso, ele entende muito de cinema. Foi um desafio gratificante, como diretora, ter o Daniel no set".

Responsável por modernizar a televisão brasileira, em seu histórico de diretor na TV Globo, no comando de coqueluches midiáticas como "Malu Mulher" (1979), Daniel Filho tem parcerias com titãs do Cinema Novo em seu currículo como ator. Interpreta Vavá em "Os Cafajestes" (1962), do já citado Ruy Guerra, e vive Leleco em "Boca de Ouro" (1963), de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018). Foi ainda o Geraldinho de "Chuvas de Verão", de Cacá Diegues. Na TV, fez miocárdios brasileiros saltitarem pelo ardor da democracia como Bergeron na novela "Que Rei Sou Eu?" (1989). Mesmo com toda a experiência que tem na bagagem, ele regressa aos sets na sanha de aprender o que as novas tecnologias da imagem podem oferecer.

"Daniel é meu pé de coleho. Eu não faço filme nennum sem pedir que ele leia o projeto", diz Cris D'Amato. "Ele sabe muita coisa e, por isso, para ele, eu sempre abro os ouvidos".

Produtor de Cris em "Viva a Vida" e na milionária cinessérie "S.O.S. Mulheres ao Mar" (2014-15), Julio Uchôa concorda com a cineasta em relação à potência que Daniel Filho tem.

"Ele me ensinou a não ter medo do tamanho de um projeto e a jogar fora roteiros inteiros no lixo se não parecerem bons à altura do que o cinema necessita", diz Uchôa.

Em 2025, em meio a muitas aparições na telona, Daniel Filho, hoje com 87 anos, celebra as duas décadas de sucesso de "Se Eu Fosse Você" (2005), comédia que inaugurou a febre chamada de neochanchada, lotando o circuito. Na entrevista a seguir ele relembra esse acerto, entre muitos. Depois de ter lançado "Boca de Ouro" (2019) e "O Silêncio da Chuva" (2021), em seguida, ele tem um novo longa para filmar. No papo a seguir, ele adiante o que é:

Como você vê essa retomada contínua de sua trajetória como ator?

Daniel Filho: Tenho dois projetos de cinema para dirigir, que é um remake do meu filme "O Casal" e uma adaptação da peça "Toda Nudez Será Castigada", do Nelson Rodrigues. Só que com a Ancine parada, sigo esperando, com paciência, para ver como as coisas vão ficar. Nessa espera, o cinema está explodindo. Quando a gente estava feliz com os 2,2 milhões de ingressos vendidos por "Minha Irmã E Eu", veio "Ainda Estou Aqui", com a consagração da Fernandinha (Torres) pelo mundo, e o êxito de Guel (Arraes e Flávia Lacerda) em "O Auto da Compadecida 2". Teve ainda o "Malu", que eu adoro. Nesse momento em que estou sem filmar, cheio de projetos e desejos de dirigir, passei a rever a vida e a relembrar que eu sou ator. Quero que as pessoas se lembrem de mim e não me deixem de molho. A gente não tem que dar prova de vida pros bancos, quando chega a uma certa idade? Então, quero provar nas telas que eu estou aqui. Estou bem de cabeça e me locomovo bem. Além disso, eu sou viciado em set. Estou louco por novos convites.

O que falta para o seu "Toda Nudez Será Castigada" começar a ser rodado?

A ideia seria filmar no primeiro semestre, mas tudo agora depende de quando o dinheiro vai sair. Não sei quanto dinheiro eu vou ter, o que me leva a não me comprometer, ainda, com uma atriz para viver a protagonista, Geni, embora eu já tenha alguns nomes na cabeça, para não prender uma artista. Enquanto isso, estou relendo o texto da peça homônima do Nelson Rodrigues para saber o que eu vou fazer. Estou feliz com o projeto, sobretudo por acreditar que Nelson deve ser filmado eternamente. Ele mantém a nossa cultura viva. O que eu preciso é saber como eu comunico um texto como "Toda Nudez..." com o hoje. O cinema sempre reflete o momento que você está filmando. Pode ser um filme sobre a vida do (guerreiro mongol) Genghis Kahn, mas ele vai ter reflexos do presente. "A Vida de Cristo" que se filma hoje será diferente de um "A Vida de Cristo" filmado no passado, por carregar ecos do presente.

Muitos contemporâneos seus - vários cineastas já na casa dos 70 anos - reclamam que estão sendo preteridos na atual política de cultura dos editais brasileiros. Você acredita que este seja o seu caso em seu ofício de realizador?

Há pouco tempo (em 2022), eu ganhei o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o troféu Grande Otelo, de Melhor Direção, por "O Silêncio da Chuva" (que fez sua estreia mundial no Festival de Moscou), e, mesmo assim, fiquei parado, sem conseguir recursos de que preciso para filmar. Tem muita gente hoje que não sabe mais quem eu sou. A falta de memória é um problema da cultura brasileira. Isso vale até para a TV Globo. Dos anos 1990 para baixo, muita gente não sabe o que foi feito de bom por lá. Hoje, o lançamento mais importante da emissora é um remake (da novela "Vale Tudo", de 1988). No meu tempo lá, a gente só fazia remake quando havia problema de produção, ou censura. Outro dia, falando com o Boni (executivo hoje aposentado responsável pela consagração do império global), eu me perguntei: "Será que a gente não explicou direito o que eles devem fazer?". Se a gente tá perdendo muito na televisão, pelo menos o cinema está aí, forte. Você vê um caso como o "Malu", um filme contado com o coração, e nota as possibilidades boas que temos.

Qual é o maior problema que você enxerga hoje na gestão da Margareth Menezes no Ministério da Cultura?

Gestão. Não adianta o governo dar só R$ 50 mil pra uma pessoa fazer um filme sem ter a noção do tempo que demora o processo de filmagem e do tanto de gente que passa a ser empregada para um set ficar de pé. Não por acaso, nos tempos do inominável (Jair Bolsonaro), a gente dizia, nos créditos de nossos longas, quantos empregos geramos, para pararem de dizer o absurdo de que mamamos nas tetas da leis. Sabe do que eu sinto falta hoje? É de termos uma liderança como a do Luiz Carlos Barreto, produtor que ainda está aí, mas não está mais na frente, no front. Estamos precisando de um líder com a coragem e a disposição do Barretão.

Você fala da carência de lideranças, mas aponta com destaque o momento de bonança popular do nosso cinema, sobretudo com todo o agito do Oscar em torno de "Ainda Estou Aqui". Como vê a consagração do filme, que já bateu 3,5 milhões de pagantes?

Para além da grande qualidade do filme, tem a Fernandinha (Torres). Depois do linchamento por que a gente passou em anos recentes, na arte, o que a Fernandinha tem feito pela cultura brasileira, no mundo, é excepcional. Desde Carmen Miranda, ninguém teve uma repercussão tão forte. Sempre simpática e elegante, ela faz o mundo dar atenção para o filme e para o Brasil.

Estima-se que "Viva a Vida", que estreia semana que vem, tenha um impacto popular forte, nessa leva de boas bilheterias. Como é a sua parceria com a diretora do longa, Cris D'Amato, que já foi sua assistente?

A Cris D'Amato é uma irmã. Ela fica tão preocupada quando sabe que eu vou filmar que sempre arruma um tempo para estar comigo, mesmo sem me perguntar do que eu preciso. Já abriu até data na agenda para estar comigo no projeto "Toda Nudez Será Castigada".

A franquia "Se Eu Fosse Você", inagurada por você em 2005, está completando 20 anos. Foi um dos maiores fenômenos da Retomada. O primeiro vendeu 3,6 milhões de tíquetes e o segundo, de 2009, vendeu 6,1 milhões de entradas. Que importância esse sucesso tem para a sua trajetória como cineasta?

Foi uma alegria fazer um filme pensando no público, calcado em grandes atores que conseguiam fazer humor sem se basear na palhaçada para isso. Não era eu que ia dirigir, inicialmente, mas, sim, o Jorginho Fernando. Acabou que eu entrei, em cima da hora, e escalei a Glória Pires e o Tony Ramos, que não sabiam que tinham humor. Para o segundo, eu estudei muito, tecnicamente, "O Poderoso Chefão 2". Queria entender o que o mestre Francis Ford Coppola fez no que é considerada uma sequência perfeita.

Falando em estudar exemplos de prestígio, temos o Oscar 2025 chegando no dia 2 de março. Além de "Ainda Estou Aqui", que filmes te impressionaram bem?

A única atuação que é páreo para a da Fernandinha é a da atriz (Mikey Madison) do "Anora", de que eu gosto muito. Seu diretor, Sean Baker, que já havia me impressionado no "Projeto Flórida" e no "Tangerina", fez algo próximo de Billy Wilder nessa sua comédia. Tem "A Semente do Fruto Sagrado" nesse Oscar e é um filme impressionante, vindo do Irã. Tem ainda o indiano "Tudo Que Imaginamos Como Luz", que também me impressionou. A cinebiografia do Bob Dylan, "Um Completo Desconhecido", é um filme muito bom, com Timothée Chalamet numa grande atuação.