Sempre é tempo de Almodóvar
Firme e forte no circuito carioca desde outubro, 'O Quarto Ao Lado' pode despontar entre os indicados ao Oscar enquanto seu diretor prepara um filme de Natal
A recente chegada de "Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão" (1980) à MUBI, onde se vê ainda "Ata-me" (1989), joga holofotes sobre a fase de arranque de Pedro Almodóvar no formato longa-metragem ao mesmo tempo em que ele prepara seu novo projeto, "Amarga Navidad". Será um filme de Natal (mas à moda dele), falando de uma mulher abandonada por seu companheiro às vésperas de o Papai Noel chegar. Fala-se de Penélope Cruz como sua possível protagonista, mas nada foi divulgado oficialmente por sua produtora, a El Deseo.
Ele ainda tem compromissos com seu mais recente exercício autoral, "O Quarto ao Lado" ("The Room Next Door"), que deve ser anunciado amanhã entre os indicados ao Oscar 2025. As nomeações às estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood vão ser anunciadas nesta quinta-feira e o artesão cinematográfico espanhol ganhou duas. Levou a de Melhor Roteiro Adaptado por "Fale Com Ela" (hoje na Netflix) em 2003, e a de Melhor Filme Internacional, em 2000, por "Tudo Sobre Minha Mãe", que pode ser visto no www.mubi.com.
Já seu título mais novo - e possivelmente oscarizável -, com Julianne Moore e Tilda Swinton, é uma atração obrigatória do circuito carioca, embora esteja disponível numa só sessão em tela grande. Pode ser visto hoje às 13h50, no Estação NET Botafogo.
"A natureza de um filme sempre é a incerteza, pois filmar é como um safári, no qual a gente entra sem conseguir prever os perigos pela frente, pois a vida é movimento", disse Almodóvar ao Festival de San Sebastián, em setembro, de onde saiu com o troféu honorário Donostia, que contempla o conjunto de sua carreira.
Estima-se que "O Quarto Ao Lado" terá uma projeção na 75ª Berlinale, marcada de 13 a 23 de fevereiro, na Alemanha, onde Tilda Swinton recebe o Urso de Ouro Honorário. O longa, lançado aqui em outubro, rendeu a ela uma indicação ao Globo de Ouro (que perdeu para Fernanda Torres, em "Ainda Estou Aqui"). No exterior a bilheteria desse Almodóvar outonal com Tilda beira US$ 15 milhões, um número aquém dos grandes sucessos de bilheteria do realizador manchego. Em sua Espanha natal, a fita concorre à dez Goyas, o Oscar ibérico.
Vestígios de "Persona" (1966) salpicam Bergman aqui e ali em "O Quarto ao Lado", que foi o ganhador do Leão de Ouro de Veneza do ano passado. A evocação bergmaniana se faz notar sobretudo pela justaposição de duas vivências femininas que se amalgamam (até certa medida) em momento de calvário. São reminiscências cinéfilas sutis, pois o que há de mais explícito nesse novo Almodóvar são as alusões à melancolia que transborda das experiências cromáticas do pintor Edward Hopper (1882-1967), em especial na tela "Room in New York" (1932). O colorido sempre foi uma das marcas do cineasta espanhol e a base da cor, nesse diálogo dele com o livro "What Are You Going Through", de Sigrid Nunez, parece ser a paleta de Hopper, pincelando o estudo do indivíduo em seus momentos mais introspectivos. Por vezes, vemos brandura em cena, num reflexo de um processo criativo que o diretor de "A Lei do Desejo" (1987) chama de "fase de contenção", mas há momentos em que a vermelhidão se espalha pela tela, vide o batom rubro nos lábios de Tilda. Essa vermelhidão não arrefece o que existe de melancólico na narrativa - pelo contrário, exalta essa sensação.
A trilha perseguida aqui evoca um dos títulos menos festejados do artesão autoral manchego: "Julieta" (2016). É um exemplar típico do "almodrama". Quem cunhou esse termo foi o baiano Caetano Veloso, ao se referir à estética de seu amigo ibérico. Existe ainda um outro conceito para definir a estética de Almodóvar: metamelodrama. O verbete é parte das pesquisas de dramaturgia feitas pelo professor (também da Bahia) José Carvalho, considerado o mais prestigiado teórico sobre roteiro no Brasil, que leciona como escrever para cinema e TV no Rio e em São Paulo na Oficina Roteiraria. Com base nas reflexões antropológicas do americano David Bordwell e nos ensaios geopolíticos do português João Maria Mendes, Carvalho consolidou o princípio do "metamelodramático". Ele parte da ideia de que o realizador de "Má Educação" (2004) cria seu universo com base no tecido visual "vivo" derivado do melodrama clássico e de suas releituras modernas, de Douglas Sirk a Rainer W. Fassbinder. De fato, o cálido "Julieta" tirava sua percepção da condição feminina de "lições" que o cinema do passado nos deu, potencializadas por um diálogo com a literatura de Alice Munro. "O Quarto ao Lado" faz o mesmo, visitando Bergman... e arrastando Hopper como uma âncora geográfica, como a afirmação de sua medula americana.
Não se trata de um Almodóvar in Spanish, que habla a língua da Espanha, e, sim, um filme em língua inglesa, como foram "A Voz Humana", de 2020 (já disponível para aluguel na Amazon Prime), e "Estranha Forma de Vida", de 2023 (encontrável na grade da já citada MUBI). Trata-se também de um exercício de elegância pleno, formalmente mais depurado do que Pedro A. jamais foi. Pode-se até falar no adjetivo "sereno" no trânsito do longa pelo código histórico do melodrama. A recorrência dos verbos "perecer" e "partir" na espinha dorsal do enredo é uma justificativa para os takes de luz mais outonal na fotografia de Edu Grau, que filtra o olhar barroco habitual do mestre por trás de "Dor e Glória" (2019).
As elipses, marcas gramaticais da obra de Almodóvar, vão e voltam ao longo da narrativa, na montagem de Teresa Font, que ferve no terço final, sobretudo numa sequência (de virada no roteiro) em que um policial de credo fundamentalista (Alessando Nivola) entra em cena. A trilha sonora, composta por Alberto Iglesias, também aquece o estudo sobre cumplicidade que se desenrola no enredo.
Tudo parte do processo de (re)aproximação de duas amigas há muito distantes. No meio do lançamento de um livro novo, a escritora de autoficção Ingrid (Julianne Moore) descobre que a correspondente de guerra Martha (Tilda Swinton), de quem era íntima, está muito doente, com câncer. Elas trabalharam juntas na mesma revista, mas Ingrid tornou-se uma romancista, enquanto Martha consagrou-se em coberturas jornalistas de confrontos armados.
O reencontro delas é doce e revive muitas histórias. A melhor delas envolve um fotógrafo, que era parceiro de trabalho da repórter - papel dado a Juan Diego Botto -, e o um padre (o ótimo Raúl Arévalo). Muitos causos são trocados até que a quimioterapia de Martha deixa de surtir efeito. Ali, a personagem de Tilda decide toma ruma pílula que acabe com a vida - com dignidade, sem sofrimento. O medo e a solidão do fim fazem com que ela peça ajuda à antiga colega, uma vez que várias outras amigas lhe recusaram o auxilio. Para isso, as duas têm de ficar juntas numa casa, no campo, isoladas. É nesse momento que a autora vivida por Julianne se abre para um oceano de inquietações existenciais, extraindo da atriz um desempenho inquietante. A questão moral e até certo ponto criminal (segundo a Lei, nos EUA) não incomoda Ingrid. O seu incómodo é ver alguém de que gosta (muito) partir. A atuação colossal de Julianne é amplificada na troca com uma figura que galvaniza os combates filosóficos e sentimentais do filme: seu ex-amante e atual amigo, Damian, um autor de ensaios teóricos interpretado por John Turturro em estado de graça.
É ele quem vai ajudar Ingrid a se preparar para o torvelinho afetivo que virá com a despedida de Martha (se esta for possível, e viável). Damian é um caminho para que Almodóvar fale de eutanásia a partir da acomodação (de feridas, de desilusões), com citações explícitas à prosa de James Joyce (1882-1941) e a uma obra-prima que John Huston (1906-1987) filmou a partir da literatura dele, "Os Vivos e os Mortos", de 1987. Igualmente tocante é uma menção a Buster Keaton (1895-1966) e ao seu humor cinemático. São referências a paixões de um contador de histórias que desde "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999) alcançou o Panteão.
Além de sua presença no streaming e no Estação Botafogo, Almodóvar se mantém entre nós pelas livrarias. Sua antologia de memórias "El Último Sueño", editada na Europa pela Reservoir Books, foi traduzida para o português pela Cia das Letras há pouco. Em 12 narrativas curtas, o artista abarca sua própria vida, da década de 1960 até os dias de hoje, quando totaliza (só) 177 prêmios referentes à sua filmografia multicolorida.
"Há um limite entre o que a gente é e o que gostaria de ser. Esse limite é crucial para o amor e as histórias que a gente conta sobre o amor", disse Almodóvar em Cannes, numa masterclass. "Meus filmes iniciais tinham muito sexo explícito. Carregava nessas tintas. Hoje, ao rever algumas sequências que filmei no passado, sinto preguiça, pois prefiro expressar o desejo de outro modo".
Além de "O Último Sonho", um outro livro assinado por Almodóvar repousa com destaque nas prateleiras das melhores lojas do Brasil (e na Amazon). É um deslumbre o trabalho editorial que a Planeta, em seu selo Tusquets, fez com duas incursões do diretor manchego pela seara das Letras: "Patty Diphusa" (1991) e "Fogo nas Entranhas" (1981). Os dois textos, publicados num período de dez anos, relativos a uma das fases de maior tônus contracultural da obra do diretor foram reunidos num só volume, traduzido por Eric Nepomuceno, com direito a um delicioso texto de orelha da cantora e performer Letrux.