França dita a regra do jogo

Em meio à projeção de clássico de Jean Renoir no Rio, o cinema francês festeja as vitórias de 'Emilia Pérez' no Globo de Ouro e prepara ofensiva para lotar salas nos próximos meses

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Indicado na categoria de filmes europeus, 'Emilia Pérez' também aparece no rol de filmes que podem conquistar alguma premiação na premiação espanhola

Com estreia nacional em tela grande marcada para o dia 6 de fevereiro, "Emilia Pérez" tornou-se o longa-metragem mais premiado do Globo de Ouro de 2025, na mesma festa que coroou a carioca Fernanda Torres (por sua atuação em "Ainda Estou Aqui") em Beverly Hills, no último domingo, estabelecendo a saga cantada (e dançada) do parisiense Jacques Audiard como um atestado de vitalidade do cinema francês pelo mundo afora. Entram para a conta da fita os troféus de Melhor Musical/Comédia, Melhor Canção ("El Mal"), Melhor Atriz Coadjuvante (Zoa Saldaña) e Melhor Filme em Língua Não Inglesa (derrotando o drama de Walter Salles com Torres).

Há um ano, a terra de Emmanuel Macron também fez bonito na premiação anual dos correspondentes de imprensa estrangeira em Los Angeles com a consagração de "Anatomia de uma Queda", de Justine Triet, que acabou por conquistar o Oscar de Melhor Roteiro Original.

A curiosidade deste ano é que Audiard, em seu duplo discurso de agradecimento, cravou: "Não falo inglês". Usou a língua de seu país num palco hollywoodiano e pode fazer o mesmo na cerimônia do Oscar, marcada para 2 de março, no Dolby Theatre, se entrar no rol dos indicados a ser anunciado no próximo dia 17.

Ganhador da Palma de Ouro de 2015 por "Dheepan: O Refúgio" e responsável por bilheterias milionárias ("O Profeta" e "Ferrugem e Osso"), o realizador de 72 anos se firma como um dos medalhões de uma filmografia que não só inventou o cinema (em 1895, nos experimentos dos irmãos Lumière) como batalha dia a dia, arduamente, por sua sustentação em salas de projeção, apesar da concorrência pesada dos streamings. Essa luta deu frutos em 2024 (dos mais lucrativos) e, pelo visto, ensaia o mesmo caminho no ano que acaba de nascer.

Exibido na abertura do Festival do Rio, em outubro, "Emilia Pérez" levou 1 milhão de pagantes ao circuito de sua nação, à força da trajetória afirmativa de um chefão do tráfico latino que transiciona, sai do crime e, com a ajuda de uma advogada (Saldaña), regressa sob identidade feminina, vivida pela espanhola Karla Sofía Gascón. A atriz fez carreira no México (onde a trama de Audiard, falada em espanhol, ambienta-se) quando ainda assinava Carlos Gascón.

Com forte representatividade queer, a produção, orçada em €25 milhões, abriu sua carreira em Cannes, em maio, de onde saiu com o Prêmio do Júri e um prêmio coletivo de interpretação para suas atrizes (Adriana Paz, Selena Gomez e as já citadas Zoe e Karla). Depois do balde de Globos que conquistou, ensaia lotar multiplexes planeta afora, antes de entrar na grade da Netflix. Esse percurso redesenha a rentabilidade da França nas telas.

Entre janeiro e dezembro do ano passado, outras duas conquistas milionárias ampliaram a receita francesa em venda de ingressos. De um lado, a comédia "Un P'tit Truc En Plus" somou 10,8 milhões de espectadores; do outro, o épico, "O Conde de Monte-Cristo", lançado aqui no Festival Varilux, foi prestigiado por 9,2 milhões de espectadoras/es. Estima-se que as cifras se mantenham altas em 2025. É o trabalho que a Unifrance terá no alvorecer do ano que vem.

Esse é o órgão do governo francês cuja missão é assegurar a circulação mundial dos filmes feitos em solo parisiense, em Marselha, em Nice, em Nantes e arredores, realizando um evento anual, chamado Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, para atrair distribuidores e a mídia.

Trata-se de um fórum organizado no hotel Sofitel Arc de Triomphe, em Paris, sempre em janeiro. Nesta edição, seus trabalhos acontecem de 14/1 a 21/1. Sua programação de exibições e entrevistas mobiliza estrelas e cineastas. Por lá devem passar talentos como a diretora Audrey Diwann - que abriu o Festival de San Sebastián, em setembro, com o remake de "Emmanuelle" - e a diva Isabelle Huppert, que presidiu o júri do Festival de Veneza, em agosto. Das novidades que devem espocar por lá se destacam a sci-fi "Chien 51", de Cédric Jimenez; a biopic em duas partes "De Gaulle", de Antonin Baudry; a fantasia "Kaamelott: The Second Chapter", que dá continuação ao recordista homônimo de público de 2020, sobre a Távola Redonda; a chanchada "Les Tuche: God Save the Tuche", com o Didi Mocó do Velho Mundo, Jean-Paul Rouve; e o thriller "13 Jours 13 Nuits", de Martin Bourboulon.

Em meio a essa boa onda do país cinematograficamente mais prolífico do Velho Mundo, uma de suas vozes autorais mais ativas, Emmanuel Mouret, ocupa telas do Grupo Estação e do Cinesystem Botafogo com "Crônica de uma Relação Passageira". Esta noite, às 21h, o Estação NET Gávea projeta um dos mais aclamados filmes franceses de todos os tempos: "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir (1894-1979).

Sua exibição no Rio faz parte da sessão Classiquíssimos do Estação, promovida às segundas em Botafogo e às quartas na Gávea. Na trama de Renoir, o aviador André Jurieux (Roland Toutain) é saudado como um herói no aeroporto de Le Bourget. Depois de ter cruzado o Atlântico com o único objetivo de impressionar a bela Christine de La Chesnaye (Nora Gregor), ele ficou desapontado por não encontrá-la lá, em sua chegada. Seu amigo Octave (vivido pelo próprio diretor), solidário com sua dor, tenta animá-lo convidando-o para ir a um castelo em Sologne. O proprietário, Robert de La Chesnaye (Marcel Dalio), um marquês inconstante casado com a frívola Christine, está se preparando para organizar uma festa de caça seguida de uma celebração suntuosa e selvagem. O evento acaba em reviravoltas que fizeram do longa um patrimônio cinéfilo.

O êxito dele ajudou a frutificar a cultura da autoralidade que gerou artistas como Audiard e segue a levar a língua francesa para os cinemas do mundo.