CRÍTICA FILME - GLADIADOR II: Ave, Ridley!

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Encarnado por Denzel Washington, Macrinus, um promotor de lutas entre gladiadores, arquiteta uma conpiração para tomar Roma

 

Enriquecido às custas do apetite sádico dos imperadores gêmeos Caracalla e Tegula (Fred Hechinger e Rory McCann) por imolações no Coliseu, Macrinus, a figura mais maquiavélica do colossal "Gladiador II", que pode (e deve) dar um terceiro Oscar a Denzel Washington, é um capitalista cuja mais-valia é o sangue alheio.

Cada gota derramada em seu negócio faz dele uma espécie de Donald Trump, um empresário que se aproxima da aristocracia, e ambiciona para si um papel de estadista, alimentando seus apoiadores com a cultura do ódio, na certeza de que a violência entorpece.

A vaidade alheia é o combustível de sua jogatina política. Faz os monarcas parecerem mais geniais do que são e tenta cooptar até o herói, Lucius (Paul Mescal, numa atuação de garbo), com a promessa de uma vingança. Seu interesse, num primeiro momento, parece ser um redesenho do império onde se fez um alfarrabista de guerreiros, mas logo, a corrupção que reside em seus interesses transborda em cena. A pista sobre seu caráter quem dá é o próprio Lucius, muito antes de compreender as intenções de seu "empregador", quando diz: "Roma infecta o que toca".

Macrinus é um câncer. Entra em metástase pouco a pouco, fazendo do novo filme de Ridley Scott um estudo inquietante sobre estratégias de dominação numa era de crepúsculo anunciado para uma civilização que teve o planeta a seus pés - e o perdeu. O roteiro de David Scarpa é uma análise desse processo de perda, calcado na cruzada heroica de Lucius, herdeiro de Maximus, personagem consagrado por Russell Crowe no "Gladiador" anterior, sucesso de bilheteria no alvorecer dos anos 2000. Sucesso que já antevia o ocaso da glória romana.

Ambientada cerca de 16 anos depois do original, a nova superprodução de sir Ridley, com orçamento estimado em cerca de US$ 250 mil, avança muitas casas no tabuleiro das moléstias governamentais de uma nação todo-poderosa que se encontra na fase final de seu espírito colonizador, já com antipatia declarada aos cristãos. Seu ícone de guerra, o general Acacius (Pedro Pascal, impecável), é uma pedra nas sandálias de Macrinus e há de rolar como as cabeças de quem fornece entretenimento a Caracalla e Tegula, dois soberanos encarnados com brio por Hechinger e McCann, numa composição nas raias da podridão.

Nesse avanço geopolítico, numa direção madura (e ágil), Ridley se mantém fiel à cartilha épica do filão sword-and-sandal, também chamado de peplum, que aborda as vicissitudes morais greco-romanas, com foco em seus combatentes, heróis de guerra e deuses. Flerta com clássicos (sobretudo italianos, como "Rômulo e Remo" e "Maciste no Inferno"), mas se embrenha mais pela tradição de tratados geopolíticos hollywoodianos, como "Quo Vadis" (1951), celebrizado pelo Nero flamboyant de Peter Ustinov (1921-2004). Tem adrenalina aos litros, bombeadas em sequências de batalha que desafiam as leis da gravidade, e carrega em si uma análise ácida da prática de manutenção do Poder de dar inveja a "Game of Thrones".

O equilíbrio que Ridley alcança entre o espetáculo e a sociologia carrega uma maestria que, há muito, ele não demonstrava, mostrando que não apostou numa continuação caça-níqueis (o que se viu no vergonhoso "Coringa: Delírio a Dois"). Seu "Gladiador" original faturou US$ 465 milhões e ganhou cinco Oscars, entre eles o de Melhor Filme. É possível que a parte dois repita os feitos do primeiro, apoiado na fotografia dionisíaca de John Mathieson.

Reza a lenda que o ponto mais fraco de sir Ridley é sua vaidade, expressa pela grandiloquência das suas produções e também por um desejo de alcançar um lugar que realizadores com status de filósofo do cinema (Stanley Kubrick, Terrence Malick) conquistaram. Estes o fizeram pela transcendência das suas reflexões cinematográficas. Não é por acaso que dizem que "Prometheus" foi a tentativa de Scott fazer uma "Árvore da Vida" ou um "2001: Uma Odisseia no Espaço". Ele já flertou com causas mundanas ao conversar com os códigos das telenovelas em "Casa Gucci" (2021), apoiado em Lady Gaga. Também já trabalhou com o ideal a superação em "Perdido em Marte" (2015), que faturou US$ 630 milhões. Na prática, no entanto, a maior fragilidade do realizador britânico está em seu joelho. Em 2010, quando seu "Robin Hood" foi programado para abrir o Festival de Cannes, ele não conseguiu comparecer à abertura devido a uma operação de última hora em sua rótula. A fragilidade da sua integridade óssea já foi manchete várias vezes, mais até do que sua mão "podre" para a escolha de projetos: "Hannibal" (2001) ou "Rede de Mentiras" (2008) comprometeram - e muito - a sua imagem como campeão de bilheteria e como um realizador refinado. Só não fizeram mais estrago porque - bem assessorado - Scott fez da sua perna machucada um assunto que rendia mais pano para mangas nos jornais do que os seus deslizes estéticos. Só nos anos 1990, quando "Até o Limite da Honra" (1997) saiu, não houve assessor ou publicista que pudesse salvá-lo, perante a toda a ironia que rodeou a versão Rambo de Demi Moore, apesar das boas receitas que arrecadou com essa passagem pelo universo dos quartéis. Apesar disso, ataques sazonais da mídia (e da crítica) não delapidaram o patrimônio milionário que Scott construiu, nem o prestígio que há de crescer com seu longa mais poético dos últimos 20 anos.