CRÍTICA FILME - AINDA ESTOU AQUI: Mãe coragem
Foi o poeta Alex Polari de Alverga, nas páginas de "Inventário de Cicatrizes", quem levantou a bola que volta a rolar agora, desta vez nas telas, com "Ainda Estou Aqui" nas telas. Segundo o bardo que radiografou os Anos de Chumbo: "Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre/ hoje faz-se morrer a velha morte de sempre/ com muito maior urbanidade,/ sem precisar corar as pessoas bem educadas,/ sem proporcionar crises histéricas nas damas da alta sociedade/ sem arrefecer os instintos/ desta baixa saciedade".
O que doeu lá atrás, de 1964 a 1985, deixou feridas que foram reabertas com o golpe de 2016 e escancaradas com a eleição de Bolsonaro. Esses dois episódios fizeram com que Walter Salles interrompesse um hiato com a ficção de metragem longa, iniciado depois da estreia do belíssimo "Na Estrada" (2012), e reagisse.
Sua reação - em forma de um filme impecável - é um convite a catarses históricas e, para além delas, um chamado a uma reflexão acerca dos riscos que ainda cercam o avanço da sanha de ultradireita. Como escreveu Polari: "Hoje a coerência dos sistemas/ me parece ridícula". A saída para evitar que o fantasma da ditadura encarne em um novo Messias aparece agora, em circuito, por meio de uma figura heroica: a advogada Eunice Paiva (1932-2018). Seu heroísmo foi o da autoimolação e o do combate: doou-se para dissipar névoas da tortura e das práticas de sumiço de ditos "subversivos" praticadas pelo Estado ao longo dos 21 anos em que o Brasil vestiu farda verde oliva. Celebrizada na literatura no romance "Ainda Estou Aqui", escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva, ela agora passa à fauna dos heróis de Walter. Tem horas em que heróis são necessários, sobretudo quando a vilania se despe das sutilezas, como fizeram os bolominions. No tempo de Collor, que gerou "Terra Estrangeira" (1995), primeiro sucesso mundial do realizador (dirigido em duo com Daniela Thomas), foi assim também.
Responsável por um dos mais belos documentários da Retomada, "Socorro Nobre" (1996), e, antes dele, por "Krajcberg - O Poeta dos Vestígios" (1987), Walter nunca se desligou da Não Ficção e trouxe dela dispositivos de investigação do real (e de incorporação de atores não profissionais) essenciais para a construção de seu longa mais famoso: "Central do Brasil". Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale de 1998, o (melo)drama sobre a professora Dora, que precisa deixar os subúrbios do Rio e se mandar para os cafundós do Nordeste com um órfão a tiracolo, vendeu 1.186.859 ingressos em circuito nacional. Pelo mundo afora, faturou cerca de US$ 22 milhões, configurando-se como um dos maiores sucessos brasileiros no exterior. Foi de "Central..." que nasceu a chamada Nova Onda Latino-Americana, que revelou Alejandro González Iñárritu ("Amores Brutos"), Pablo Trapero ("El Bonaerense"), Lucrecia Martel ("La Ciénaga - O Pântano"), Daniel Burman ("O Abraço Partido") e "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles. Chamou-se assim a fricção estética na qual cineastas de diversos cantos da Pangeia de colonização ibérica produziram imagens aptas a incluir no audiovisual uma massa invisibilizada retratando-a a partir de uma abordagem de tutano documental, a propor um novo realismo a partir de temas urgentes, sobretudo: a. a exclusão; b. o sentimento de desterro; e c. o desamparo estatal. Walter foi precursor nessa linhagem fazendo de Dora sua Mãe Coragem. Comungou da máxima de Brecht que "mais violentas que as águas de rio que tudo arrastam são as margens que a cerceiam".
Dora, na composição colossal de Fernanda Montenegro, dava orgulho até ao Panteão dos gregos: como Hércules, encarava qualquer Leão da Nemeia para levar o menino Josué ao lar. A mesma disposição hercúlea havia em Tonho, de "Abril Despedaçado" (2001), capaz de ganhar chão, em disparada, para contrariar os códigos do justiçamento do Sertão. A recusa da ira o levava à errância e, nela, ele vai brigar pelo amor. Inclua nessa mesma enfermaria o jovem Che Guevara interpretado por Gael García Bernal em "Diários de Motocicleta" (2004). Trafegar pela América Latina era uma desculpa para que Che levasse justiça social a conta-gotas a quem tem fome de esperança.
A Eunice esculpida por Fernanda Torres no limite preciso do transbordamento é desses. Sua batalha em "Ainda Estou Aqui" se faz em nome do amor... primeiro pelo marido que "sumiu" ao ser levado para depor... depois pelo ideal de um Brasil que não precisa mais silenciar. Um ímpeto digno do de Dora e uma resiliência similar ao do Guevara ao belo canto de Gael dão norte à sua cruzada na trama escrita por Murilo Hauser e Heitor Lorega, em roteiro premiado no Festival de Veneza. Sua rotina de mãe de família feliz, com as filhas (Vera, Eliana, Nalu e Babiu) e o filho (Marcelo), é interrompida bruscamente quando militares à paisana levam seu companheiro, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (papel encarnado magistralmente por Selton Mello), para depor, sem explicações, e nunca mais dão notícias do paradeiro dele. Dali, ela precisa estudar Direito, tornando-se ativista, para detonar a pólvora da indignação.
Meticuloso (talvez sob a influência do que aprendeu ao filmar o .doc "Jia Zhangke, Um Homem De Fenyang"), Walter jamais deixar o pathos retesar a musculatura de "Ainda Estou Aqui" além da fronteira da comoção. Jamais resvala na frieza, mas não aquece a chama do que narra além dos limites da lucidez, pois essa é a arma de Eunice. Por isso, Fernanda Torres implode e nunca explode. Por isso, a fotografia de Adrian Teijido se mantém numa paleta sempre branda, quase outonal, que só incorre em luzes primaveris na fase de maior alegria de um enredo passado nos anos 1970, em 1996 e 2014. O "Hanna K" (1983), de Costa-Gavras, é uma referência similar ao que Walter nos entrega agora, e pode ajudar a dar a seu regresso à telona uma genealogia cinéfila onde repousar.
Produzido por Maria Carlota Bruno (de "No Intenso Agora") e Rodrigo Teixeira (de "A Vida Invisível" e "O Farol"), esse drama conta com um trunfo artístico na montagem de Affonso Gonçalves. Parceiro habitual de Todd Haynes e Jim Jarmusch, Affosno assegura ritmo nos saltos temporais propostos pela adaptação de Lorega e Hauser aos escritos de Marcelo Rubens Paiva, preservando um timbre comedido, que rasga nosso coração nas sequências nas quais Fernanda Monetenegro está em cena, vivendo Eunice em fase mais idosa. O olhar perplexo de Fernandona, a nos fitar, evoca a mirada de Polari sobre a dimensão feminina da coragem: "Elas estão presas a uma liberdade forçada/ e às vezes retornam a esses muros/ quando as luzes da cidade/ apenas se extinguem./ Cada uma delas traz em si uma marca:/ o conhecimento que o espelho não reflete/ o amor semiclandestino do corpo que não sua/ o gemido da carícia que se esconde". Essa é Eunice, e, sim, ela ainda está aqui... presente... graças a um espetáculo cinematográfico de maturidade.
