Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um Eldorado lacrado em alcovas

Rebeca (valentina Herszage) é refém de uma rede de prostituição chefiada por Tzvi (Caco Ciocler) | Foto: Divulgação

 

Na reta final de um ano que começou com os melhores augúrios para o cinema brasileiro - à força das multidões que prestigiaram "Minha Irmã e Eu", "Nosso Lar 2- Os Mensageiros", "Mamonas Assassinas" e "Os Farofeiros 2" -, novos títulos nacionais têm mobilizado o circuito, como "Ainda Estou Aqui" e "Arca de Noé", num sopro de boas bilheterias que pode crescer com a chegada de "As Polacas", em 12 de dezembro.

Na contramão do modelo hollywoodiano de se fazer recriações de época com planos abertos, panorâmicas e luz "lavada", apolínea, o novo longa-metragem de ficção de João Jardim ("Getúlio") trilha uma rota intimista, de "filme de gabinete". É uma linha mais turva, quase num registro de chiaroscuro, com tons de marrom e vermelhos terrígenos. O Novo Mundo que é ofertado às estrangeiras que aqui chegaram ao fim da I Guerra, segundo a produção, não era o Eldorado prometido nos folclores europeus mas, sim, uma Babel de intestinos amolecidos, febres e constipações.

O painel histórico corajosamente fotografado por Louise Botkay (numa luz nada domesticada, elegante em sua dimensão mais penumbrosa) é alarmista, mas também presta louvor à sororidade, no que ela tem de mais universal. Sua estética com ecos de cinema clássico lembra o cinema recente de Marco Bellocchio (vide "O Sequestro do Papa" e "Belos Sonhos"). Sua narrativa impressionou a competição pelo troféu Redentor do Festival do Rio graças ao som e à fúria do James Mason paulista Caco Ciocler, num papel odioso que ele pluraliza em porosas camadas de inquietação existencial: o gigolô Tzvi.

Documentarista indicado ao Oscar pelo belo "Lixo Extraordinário" (feito a três com Karen Harley e Lucy Walker), Jardim tem uma retidão infalível em "As Polacas": seu foco é o calvário de judias que vieram para as Américas à cata de subsistência digna e, ao aterrarem no Rio de Janeiro do início do século XX, trombaram com a exploração sexual. Tzvi é um cafetão hebreu que abusa de jovens em estado de errância. Uma delas, Rebeca, bem defendida por Valentina Herszage (atriz em estado de graça, vide "O Mensageiro" e "Ainda Estou Aqui").

Feroz, ela despe a cota de malha farpada daquele mundo de alcova e submissão. É um mundo que, plasticamente, na telona, lembra o visual de "L'Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância" (2011), cult de Bertrand Bonello. A interpretação de Valentina é uma das atuações mais sólidas entre as performances vistas este ano nas telonas (e olha que temos Yara de Novaes em "Malu" e Fernanda Torres em recente sucesso de Walter Salles!).

Quem constrói a sinuosa dramaturgia (calçada em silêncios, cumplicidades, desejos represados e brutalidade) é um time de roteiristas formado por Jaqueline Vargas e Flávio Araújo, sob as aparas finais do "maestro" George Moura (de "O Grande Circo Místico"). Moura e Jardim fizeram juntos o já citado "Getúlio", de 2014. Voltam a se unir sob a produção de Iafa Britz, que escuda o longa com uma preciosa pesquisa sobre a diáspora judaica.

Elegante na direção de arte de Camila Moussallem, "As Polacas" evita - o quanto pode - cair na objetificação e arranhar a superexposição gráfica ao retratar agressões em coitos.

Sua trama se ambienta em 1917, quando Rebeca pisa aqui. Foge da fome, do antissemitismo e da guerra na Polônia. Vem pronta para recomeçar a vida. Ao contrário das promessas de felicidade, a realidade encontrada na cidade é muito diferente. Ao descobrir que o marido morreu, a moça acaba se tornando refém de uma rede de prostituição e tráfico de mulheres judias, chefiada pelo impiedoso Tzvi).

Ao ser obrigada a transgredir suas próprias crenças, Rebeca encontra aliadas que vivem o mesmo drama e, juntas, lutam por liberdade, na criação de um cemitério, no bairro de Inhaúma, onde possam ser enterradas a partir de um ritual bento, em rito de purificação.

Sem se deixar perder em firulas de época, o longa se detém sobre a aliança das garotas de programa que se forma nesse RJ dos anos 1910 a fim de debelar o jugo sexista. A figura cheia de mistérios da prostituta vivida por Dora Freind finca os pés do filme no debate sobre a união de angústias femininas. O trecho documental nos minutos finais arrebata o olhar pelo acabamento de sua montagem.

Vale lembrar que o Brasil já passeou por esse tema em "Sonhos Tropicais" (2001), de André Sturm, e em "As Jovens Polacas" (2019), de Alex Levy-Heller, que se baseia no cult literário de Esther Largman. Nos EUA, há "Era Uma Vez Em Nova York" (2013), de James Gray, que concorreu à Palma de Ouro de Cannes.