Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Affonso Gonçalves: 'Tenho prazer em experimentar'

Affonso Gonçalves, montador brasileiro radicados nos EUA | Foto: Divulgação

Enfurnado na ilha de edição do esperado "The Bride", de Maggie Gyllenhaal, em Nova York, Affonso Gonçalves passa em revista, num papo com o Correio da Manhã, o processo de colaboração com Walter Salles naquele que virou o "filme do momento" no Brasil: "Ainda Estou Aqui".

Foi ele quem montou o longa-metragem, um sucesso de público baseado no romance homônimo de Marcelo Rubens Paiva sobre a luta da advogada e ativista Eunice Paiva (mãe do escritor) contra a tortura nos tempos da ditadura militar.

Na trama, Eunice (papel de Fernanda Torres) luta para descobrir o paradeiro do marido, o engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello), que desparece depois de ser levado para prestar depoimento por agentes à paisana do governo de farda.

Ao formar sua equipe criativa para contar essa história de resiliência, Walter trouxe Affonso de Los Angeles. Esse bamba da montagem tem produções indicadas ao Oscar em seu currículo (como os cults "Inverno da Alma", "Indomável Sonhadora" e "Segredos de um Escândalo") e virou o editor oficial de três medalhões do cinema independente dos EUA: Jim Jarmusch ("Paterson"), Todd Haynes ("Carol") e Ira Sachs ("O Amor É Estranho"). Acaba de trabalhar com Sachs novamente, no recém-finalizado "Peter Hujar's Day".

Aos 56 anos, Affonso, nascido em São Paulo, vive nos Estados Unidos desde 1994 e estudou na London Film School, com mestrado no American Film Institute. Montou cerca de 50 títulos desde a década de 1990. Na entrevista a seguir, ele explica a simbiose de olhares que teve com Walter.

O que um montador com um currículo repleto de parcerias com alguns dos maiores talentos do cinema indie estrangeiro encontra de potência na troca com Walter Salles?

Affonso Gonçalves: Era um sonho meu trabalhar com Walter desde que me estabeleci em Los Angeles, e a gente se entendeu muito bem. Eu comecei a edição em LA e vim montar "Ainda Estou Aqui" como ele aí no Rio. Muito ligado nos detalhes, Walter dá muita atenção ao trabalho dos atores.

O que o filme te revelou sobre os bastidores da ditadura no Brasil?

Tem uma sequência em que Eunice diz para Martha (professora vivida por Carla Ribas) "Eu estou em perigo", e ela responde: "Todos estamos". Eu era muito pequeno ali naquele período histórico retratado pelo Walter, mas o que eu vejo, a partir do filme, é uma época de muita censura, por vezes até uma censura velada.

O que um montador pode adicionar de pessoal num processo de criação como o de "Ainda Estou Aqui" e como funciona, em geral, o trabalho de editar?

Um montador reage às imagens que chegam e funciona como se fosse a primeira audiência delas, escolhendo as melhores para ajudar a/o cineasta a lapidar o filme da melhor forma. No caso do Walter, a minha preocupação era dar tempo ao espectador para conhecer aquela família bem, convivendo com eles o bastante para sentir a falta de Rubens quando ele desaparece.

Qual foi a lição mais importante sobre cinema independente que aprendeu com Todd Haynes, Jim Jarmusch e Ira Sachs?

Tenho cerca de uma década que trabalho com eles e as conversas são muito profundas já no roteiro. Em um filme de estúdio, cineastas precisam responder a alguém e não costumam ter o corte final, exceto se forem figuras muito grandes como Spielberg. No cinema independente, os/as cineastas podem fazer o que querem, pois são projetos mais pessoais. O Jarmusch, por exemplo, com quem eu acabo de fazer "Father, Mother, Sister, Brother", já injeta uma certa métrica às imagens rodando o filme. Eu gosto de trabalhar com essa turma indie porque tenho prazer em experimentar, em buscar um tempo diferente para a imagem.

Você já havia editado produções brasileiras antes?

Eu participei de "Pacificado" (única produção nacional a ganhar a Concha de Ouro no Festival de San Sebastián, lançado em 2019), mas já havia uma montagem, e ajudei a Petra Costa no documentário "Democracia em Vertigem".

Existe alguma montagem histórica do cinema brasileira que te inspira?

Um montador histórico que é referência para mim é o Eduardo Escorel, por "Terra Em Transe" e pelos outros filmes do Glauber Rocha que ele montou. Tem também "Ônibus 174", montado pelo Felipe Lacerda, que eu admiro muito, e "Cidade de Deus", que Daniel Rezende montou. Esses dois também são grandes referências.

Neste momento de apogeu da cultura dos streaming, há alguma mudança na arte de editar imposta pelas plataformas?

O processo é o mesmo. Na televisão, o que muda é a questão do tamanho. Um filme independente pode ter o tempo que o cineasta quiser. Pode ter três horas ou mais. Na TV, o tempo do episódio é fechado, tem limite. É uma hora... ou uns 50 minutos. Não passa disso.

Terminando "The Bride", qual será seu próximo filme?

Vou trabalhar com a diretora Chloé Zhao, de "Nomadland".