Encrencas amorosas envolvendo trocas de parceiros, términos repentinos, indecisões e até a visita de um fantasminha camarada tornam "Três Amigas" ("Trois Amies") um deleite para as plateias do 15º Festival Varilux, a maior maratona francófona das telas brasileiras, que terá um novo encontro com essa produção dirigida por Emmanuel Mouret nesta sexta-feira. A sessão será às 18h, no Cinesystem Botafogo.
Uma trinca luminosa de estrelas - Camille Cottin, India Hair e Sara Forestier - garante ao realizador a deixa para falar sobre sororidade, e também sobre as confusões do Cupido, numa produção indicada ao Leão de Ouro do Festival de Veneza. Num enredo de ciranda afetiva, Joan (Hair) não está mais apaixonada por Victor (o ótimo Vincent Macaigne) e sofre por se sentir desonesta com ele. Alice (papel de Cottin) a tranquiliza: ela mesma não sente paixão por seu benquerer Eric (Grégoire Ludig), mas o relacionamento deles está indo maravilhosamente bem apesar disso.
Ela não sabe que ele está tendo um caso com Rebecca (Forestier), sua amiga em comum. Essas histórias hão de virar de cabeça para baixo, sobretudo depois de uma trágica virada na rotina de Victor. O inusitado é a marca desse roteiro, assim como é o ingrediente central da obra de Mouret. Nascido há 54 anos em Marselha, ele vem sendo comparado a François Truffaut (cronista romântico por trás de "A Mulher do Lado") com sua estética.
"A moral nos prende a uma forma padronizada de querer e de expressar o sentimento, ainda que o cinema, em especial o francês, tenha aberto uma discussão histórica sobre os modos de gostar. Existem diretores cinéfilos que buscam reproduzir na tela aquilo que eles viram de melhor, e há cineastas como eu, que exploram a liberdade, que buscam a surpresa, que investigam os espaços a seu redor, ainda que o façam sob a luz do que viram antes nas telas", disse Mouret ao CORREIO DA MANHÃ, no fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français. "Existe um gênero, o 'filme de amor', que já passou por Woody Allen, por Truffaut, mas que ainda tem o que dizer".
Há uma década, Mouret tomou as salas do Brasil de assalto com o doloroso "Um Novo Dueto" (indicado ao Leopardo de Ouro de Locarno, em 2013), ao debater impedimentos na paixão de personagens vividos por Virginie Ledoyen e Joey Starr. Antes já havia alcançado críticas cheias de elogio com "A Arte de Amara" (2011). Ambos se apoiam na tese de que amar funciona como um analgésico para as dores do mundo. Voltou a tratar disso no badalado drama "Les Choses Qu'On Dit, Les Choses Qu'On Fait" (2020), Aqui traduzido como "Amores Infieis". Sua narrativa mostra o encontro inesperado entre dois jovens que se apaixonam, mesmo ela já estando envolvida com um outro homem, de quem está grávida. Em 2021, o longa reinou nas indicações ao César, o Oscar à francesa, entregue desde 1976 pela Académie des Arts et Techniques du Cinéma, nos mesmos moldes da Academia de Hollywood. Mouret brigou por esse troféu em várias frentes.
"Se existe um eixo comum nos meus filmes, e ele não é consciente, é a opção por pessoas que apesar de conhecer o medo da solidão, escolhe viver", disse o cineasta.
Esse temor do qual fala mobiliza várias sequências de "Três Amigas" e impulsiona a trama de um de seus maiores sucessos: "Crônica de uma Relação Passageira", exibido no Varilux de 2023. No sapatinho, sem fazer alarde, essa comédia romântica virou cult no âmbito dos afetos. Nasceu na mostra Cannes Première de 2022 e passou por aqui na Mostra de São Paulo do ano retrasado. "Chronique d'une Liaison Passagère" (seu título original) vendeu cerca de 320 mil ingressos em solo francês. O que ele arranca de Sandrine Kiberlain e do já citado Vincent Macaigne evoca Meg Ryan e Tom Hanks em longas como "Mensagem Pra Você" (1998).
Macaigne virou seu ator assinatura. Barbudinho, taquicárdico, sem prumo em suas incertezas e falador, ele encarna o obstetra Simón, a quem transforma num ímã de gargalhadas. A gente ri de nervoso com as inseguranças dele ao conjugar o verbo "eu quero". Na trama, ele, casado e pai, passa a arrastar um caminhão por uma mulher empoderada, mãe solteira e cheia de certezas chamada Charlotte, interpretada pela campeã de bilheteria Kiberlain. Durante a sessão do longa em Cannes, o Palais des Festivals vinha abaixo de rir com os dois. Sua dramaturgia se estrutura sobre um acordo que os dois travam para transarem sem culpa: vai ser passageiro. Deveria. Mas, não é. E a delicadeza com que Mouret, à direção, explora o modo nada barthesiano com que o discurso amoroso se fragmenta é envolvente.
"Existem códigos da arte que levamos para o dia a dia de nossas relações. A maneira como o cinema afetou a realidade consciente que vivemos me faz pensar que não há apenas sexo envolvido na aproximação entre duas pessoas, há um sentimento de pertença, existe um carinho", defende o cineasta. "A maneira que eu tenho para expressar essa relação é pelo lirismo, que pode ser triste, sem perder seu vigor".