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'É o Brasil de verdade que está nas minhas personagens'

| Foto: Carolina Spork/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Desde seus tempos de repórter em O Globo, quando aproveitava brechas em incursões fora da redação para mapear potenciais personagens e registrar imagens, Ludmila Curi gravita pela fronteira entre a notícia e a poesia, cruzando um perímetro simbólico que arruma sempre um lar na narrativa documental.

Certa vez, numa Semana Santa, ao filmar um mítico dublador (Ricardo Schnetzer) para o (hoje extinto) projeto LOGO , da Rua Irineu Marinho, num vídeo chamado "Corpo de Cristo", ela empregou sua destreza na arte da escuta para descaracterizar qualquer espectro hollywoodiano sobre o grande ator à sua frente e extrair dele brasilidade, sem fórmulas. Não demorou a migrar do jornalismo impresso para o audiovisual, apostando em engenhos entre a sociologia e o lirismo como websérie "EscutaRio.com.br", desenvolvida com população em situação de vulnerabilidade do Rio de Janeiro.

Seus ensaios estéticos para as telas - "Doutor Magarinos, Advogado do Morro", sobre a resistência do Morro do Borel; e o curta-metragem "Proibidão", sobre o funk mais casca-grossa - espelham seu olhar sobre práticas de resistência. Resistir é o verbo de ação que serve de combustível à sua dramaturgia em "Marias", longa-metragem hoje em cartaz no Estação NET Botafogo, com sessões às 14h e às 19h20.

No filme, Ludmila se arrisca pelas veredas do road movie, numa travessia do Brasil à Rússia. No trajeto, a diretora narra os feitos de Maria Prestes, que se tornou uma figura importante na luta pela reforma agrária no Brasil. A montagem, assinada por Virgínia Primo, é um aulão de edição.

Nascida no Recife, Maria se engajou ainda muito jovem em movimentos políticos e, durante 40 anos, foi companheira de Luís Carlos Prestes (1898-1990), com quem teve sete filhos e viveu em exílio em Moscou.

Em suas andanças atrás de sua protagonista, Ludmila destaca outras figuras femininas que também participaram ativamente de grandes momentos do século passado (e do comecinho deste), como Maria Bonita, Olga Benário, Dilma Rousseff e Marielle Franco. Cria um mosaico de potências femininas, que expande a dimensão (seja a sagrada, seja a geopolítica) do nome que adota como título.

Qual é o simbolismo de brasilidade que o nome Maria alcança na sua investigação geopolítica por trás do feminino?

Ludmila Curi: O nome Maria é tão comum no Brasil que foi adotado por três mulheres marcantes da história do país, na luta clandestina. A protagonista viveu praticamente toda sua vida sob o nome falso de Maria; Olga Benário entrou no Brasil como Maria; e Dilma Rousseff também foi Maria, segundo o Serviço Nacional de Informações (SNI). O filme fala dessas personagens e de outras tantas com trajetórias de vidas menos extraordinárias, mas todas Marias, mulheres batalhadoras e engajadas nas lutas por direitos, por melhorias, por uma vida mais digna. O filme valoriza todas as mulheres - Marias no plural, as brasileiras, mas também as russas - como personagens estruturantes da sociedade, reconhece e celebra seus papéis muitas vezes ignorados nas narrativas hegemônicas.

Seu filme faz pensar que em vez de "pátria" o Brasil é "mátria", pela ação de mulheres que, sozinhas ou em estado de sororidade, mantêm famílias e/ou sonhos de pé. O que o seu processo de investigação te expôs sobre essa "mátria" nacional? Que Brasil está nas suas personagens?

Acho que o Brasil é mátria e pátria, mas em geral só a pátria é louvada, o que deixa a balança da narrativa de país, da narrativa de memória, desequilibrada, frágil e incompleta. Não só isso: essa desvalorização relega as mulheres a bastidores, a menores salários. São mulheres que, na prática, estão carregando esse país nas costas todos os dias, muitas vezes criando sozinhas filhas e filhos, sustentando suas famílias financeira e emocionalmente, fazendo história. É o Brasil de verdade que está nas minhas personagens, cujos corpos femininos imprimem a dupla jornada de trabalho, mas também a superação das opressões cotidianas, e muita força de mobilização, no campo individual e coletivo.

O que a Maria Prestes te ofereceu como base dramatúrgica, em seus feitos, para pensar a estrutura narrativa do filme?

Maria Prestes é uma heroína nacional, uma mulher com uma vida tão aventureira que o maior desafio era como dar conta de toda a sua trajetória nos 80 minutos de um longa-metragem. Nasceu pobre, perdeu a mãe ainda criança, trabalhou no campo, engajou-se na luta pela reforma agrária, foi perseguida, virou clandestina, foi exilada e, nessa trajetória, conseguiu ser mãe de nove filhos, sete deles com Luís Carlos Prestes. Seria inacreditável se não fosse verdade. Resumir uma trajetória rica dessas só foi possível propondo uma viagem no tempo e no espaço, e por isso fizemos um road movie, que percorre o Brasil, a Rússia, e muitos arquivos, em busca de imagens capazes de imprimir sua jornada.