Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Alquimia de um cult

Demi Moore reinventou sua carreira em 'A Substância' | Foto: Divulgação

 

Demi Moore só faz colecionar aplausos e elogios por "A Substância" ("The Substance"). É o trabalho de maior destaque de sua carreira em décadas. É "O" filme de gênero de 2024, o mais badalado do filão horrífico, no Brasil e no mundo. Ao justificar os atrativos do script escrito pela cineasta Coralie Fargeat que a levaram, aos 61 anos, a participar de um projeto sobre decadência (profissional, física e moral).

Demi cita o desejo de aceitação que rege a sociedade do espetáculo. "É uma história que me fez celebrar o que sou e fugir do que não sou, ao explorar a sensação de envelhecer e mostrar como podem ser diferentes as formas de as pessoas olharem para si", disse a estrela de "Ghost - Do Outro Lado Da Vida" (1990) em entrevista via Zoom, promovida pela organização de correspondentes de imprensa estrangeira por trás do troféu Globo de Ouro, para a qual o Correio da Manhã foi convidado. "Fiquei assustada ao ler o projeto e ele me tirou da zona de conforto", admitiu a estrela.

Desde "Até O Limite Da Honra" (1997), Demi não conseguia um papel que mexesse tanto com as plateias quanto a protagonista de "A Substância". A figura emocionalmente destroçada da musa fitness Elisabeth Sparkle devolveu a ela o prestígio popular - tamanho GG - de que desfrutou nos anos 1980 e 90. Em maio, esse body horror de Coralie (cineasta francesa antes conhecida pelo thriller "Vingança") fez sua primeira projeção pública, na telona do Festival de Cannes, e lá botou a Europa no bolso, saindo da Croisette com o prêmio de Melhor Roteiro. Desde então, a produção, orçada em US$ 17,5 milhões, já faturou US$ 43 milhões em circuito exibidor, e ampliou a audiência da plataforma MUBI. Em cartaz em solo brasileiro desde 19 de setembro, o longa já estreou no streaming www.mubi.com, mas continua a lotar cinemas. Há sessões dele em seis complexos diferentes do Rio, da Tijuca à Barra, passando pela Zona Sul.

Nas últimas semanas, Coralie vem despontando nas listas de aposta dos sites que fazem a triagem de potenciais concorrentes ao Oscar. Demi aparece em todas as especulações, como potencial indicada à estatueta da Academia de Hollywood: "Vejo que 'A Substância' virou uma experiência cinéfila de tela grande, com gente que vê o filme duas, três vezes", diz a atriz.

Na mesma coletiva, Coralie explicou ao Correio que não esperava a adesão de Moore quando enviou o roteiro a seus agentes, acreditando que Demi era um nome grande demais para um projeto independente. A qualidade de sua escrita seduziu-a. "É bom ver que 'A Substância' mobiliza um público feminino que não costuma ser aberto ao terror", disse.

Bizarra metamorfose

Com destreza invejável, Coralie narra a bizarra metamorfose por que Sparkle passa ao aceitar se submeter a um experimento. Ao ser desligada da emissora onde brilhava num programa de aeróbica, a mando de um executivo de hábitos grotescos (Dennis Quaid, hilário em cena), ela recebe um convite para provar de uma fórmula sintética capaz de rejuvenescê-la. Sem nada a perder, Sparkle prova do tal líquido (injetável) e passa por uma dolorosa mutação que a torna uma moça bem jovem. Essa figura, vivida pela ótima Margaret Qualley (de "Stars At Noon" e da série "Maid"), ganha o nome de Sue.

A exuberância em seu olhar e sua fluidez na ginástica fazem dela uma coqueluche midiática, tomando o posto que era de Sparkle. As duas deveriam ser uma só, mas elas acabam por desenvolver personalidades (e vontades) distintas, numa fratura de psique. É Médica e Monstra, Dra. Jekyll e Mrs. Hyde.

"Tudo era muito seco nesse enredo, que aborda o anseio que temos por amor, pela aceitação do próximo", diz Demi. "É um olhar sobre profundidades e superficialidades".

A rachadura entre Sparkle e Sue é parte de uma contraindicação do tal soro de "A Substância". O certo era que elas trocassem de lugar, sempre, a cada sete dias, injetando-se novas doses. Se essa exigência de data não é cumprida, efeitos nefastos ocorrem. O mais simples deles é o aumento da agonia no processo de morfismo delas e o apodrecimento de extremidades, a começar pelos dedos da mão. Há consequências mais graves, como a escassez gradual da lucidez e a aparição de sequelas físicas, com marcas, pústulas, queda de dentes e outros tipos de mutações que caminham para a monstruosidade. Assim, o que começa como um tenso estudo filosófico da vaidade descamba (com vigor) para um terror acelerado, numa metáfora para as criaturas que brotam das faltas de limite no hedonismo nosso de cada dia.

"Busquei criar uma experiência visual para as transformações corporais que fosse calcada na imagem e no som, sem palavras", diz Coralie ao Correio. "O maior desafio era encontrar atrizes icônicas que topassem enfrentar a fobia de ficar decadente. Trouxe referências de 'A Mosca', de 'Scanners', de 'Réquiem Por Um Sonho', de 'O Enigma Do Outro Mundo', e o banho de sangue de 'Carrie, A Estranha'. Enquadro toda hora corredores intermináveis, para transmitir a sensação de um ambiente do qual não se pode fugir".

Graças a esses engenhos narrativos, "A Substância" acaba de ser indicada ao European Film Awards (o Oscar do Velho Mundo) nas categorias Melhor Roteiro e Melhor Filme. A entrega será no dia 7 de dezembro, na Suíça.