Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Chris Alcazar: 'Os silêncios, os nadas e as mentiras carregam grandes verdades'

Em seu trabalho de estreia como diretora, Chris Alcazar lança um olhar empático sobre as profissionais do sexo no documentário 'Quando Vira a Esquina', que vai às entranhas da Vila Mimosa | Foto: Acervo pessoal

 

Apelidada de "Disneylândia da sacanagem", a Vila Mimosa costuma ser descrita, sob crivos geográficos e sociológicos, como um complexo sexual de bordeis e bares abertos cerca de 24 horas. Sob o crivo poético da Chris Alcazar, no estonteante documentário "Quando Vira a Esquina", a definição é menos cartesiana e mais empática.

Nesse filmaço, o que a gente vê é um lar. Um lar para o prazer (vez ou outra com um puxadinho para o amor, esse moleque atrevido, que chega sem ser chamado)... um lar para a sobrevivência... um lar para o feminino.

Depois de arrebatar a competição do Festival do Rio, com sua montagem em cadência de trem-bala (assinada por Sérgio Marini, Marcela Amarante e Yan Motta), o longa-metragem encantou a Mostra de São Paulo, onde levou um cantinho da Praça Bandeira para telas paulistanas. Em seu processo dramatúrgico, Alcazar colhe vozes de profissionais do sexo que trabalham naquele espaço, em busca de relatos que exorcizem os ranços moralistas em torno da prostituição.

Na entrevista a seguir, a diretora (uma estreante em longas com farta experiência como roteirista) fala sobre o que descobriu em sua imersão à VM.

De que maneira o seu olhar sobre o feminino - a sua vivência do feminino - se amplia e se transforma no contato com aquelas mulheres?

Chris Alcazar: Os temas te encontram. As escolhas dos temas de filmes autorais dizem muito sobre o autor. Uma pulsão pessoal, algo ligado ao particular com vínculo no universal. Esse filme nasce da minha aproximação com o universo da prostituição por conta de alguns trabalhos que fiz como roteirista de ficção. Em 2016, fui contratada para escrever a série da Bruna Surfistinha, o projeto "Me Chama de Bruna". Fiz parte da sala de roteiro da segunda temporada e fui a roteirista final da terceira temporada. Logo na sequência, fui contratada para escrever uma versão do longa sobre Gabriela Leite, baseado no livro dela: 'Filha, Mãe, Avó e Puta". Minha formação de documentarista me jogou para a pesquisa de campo e eu mergulhei fundo nesse universo. Fiz dezenas de entrevistas e acompanhei a rotina de algumas trabalhadoras sexuais. Mergulhei mais fundo: fui ao encontro nacional de prostitutas, no Maranhão, e ouvi trabalhadoras sexuais do Brasil inteiro. A prostituição faz parte do processo social do Brasil, e ela é diversa. Não é um bloco único, coeso. As mulheres são diversas, de diferentes classes sociais, exercem essa atividade por motivos diferentes. Me reconheci em muitas histórias. Tomei o tema para mim, ou o contrário… o tema me tomou. Quando cheguei na Vila Mimosa, logo na minha primeira visita, ouvindo mais histórias aqui e ali, entendi que eu tinha um filme para fazer. Eu, uma mulher, diretora e roteirista, falaria sobre essas mulheres.

Qual é o maior desafio de tangenciar um universo como o da Vila Mimosa sem ficar presa à antropologia?

Minha busca e meu interesse como cineasta são por histórias que considero relevantes, que me comovem em algum ponto. E esse ponto sempre tem relação com "gente". Gosto de gente. É inevitável esbarrar na antropologia aqui e ali, no meu trabalho. Esbarra-se nela nesse filme especificamente, em maior ou menor grau, dependendo de quem vê ou do nível de profundidade de revelações que esse mergulho cinematográfico na Vila Mimosa oferece ao espectador. Além dos dispositivos que determinei no roteiro pré-filmagem, a liberdade e o estado de "estar aberta a tudo" me guiaram na condução desse filme.

Mas de que forma a matriz antropológica, de que forma ela auxilia na criação de uma linguagem poética?

Num processo diferente do antropólogo que busca respostas ou imagina estar próximo do "real", eu estava lá buscando o real também, mas com a consciência de que tudo é representação. E que a verdade às vezes está escondida, silenciosa, soterrada em mentiras e encenações. O filme "Quando Vira a Esquina" não dá respostas ao público. As informações são, por vezes, contraditórias. Outras vezes, a informação é a mesma - aí é tudo muito claro. Como no tema maternidade, falta de oportunidade e machismo, por exemplo. Entendi que os silêncios, os nadas e as mentiras carregam grandes verdades, basta estar mais atento. Aberto.