Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME / O QUARTO AO LADO: O filme do ano, até agora, é um 'almodrama'

A correspondente de guerra Martha (Tilda Swinton) e a escritora Ingrid (Julianne Moore) vão ampliar a cimplicidade numa trama rodeada pela eutanasia | Foto: Divulgação

 

Vestígios de "Persona" (1966) salpicam Bergman aqui e ali em "O Quarto ao Lado" ("The Room Next Door") - o ganhador do Leão de Ouro de Veneza em 2024 -, sobretudo pela justaposição de duas vivências femininas que se amalgamam (até certa medida) em momento de calvário. São reminiscências cinéfilas sutis, pois o que há de mais explícito nesse novo Almodóvar são as alusões à melancolia que transborda das experiências cromáticas do pintor Edward Hopper (1882-1967), em especial na tela "Room in New York" (1932).

O colorido sempre foi uma das marcas do cineasta espanhol e a base da cor, nesse diálogo dele com o livro "What Are You Going Through", de Sigrid Nunez, parece ser a paleta de Hopper, pincelando o estudo do indivíduo em seus momentos mais introspectivos. Por vezes, vemos brandura em cena, num reflexo de um processo criativo que o diretor de "Fale Com Ela" (Oscar de Melhor Roteiro Original em 2003) chama de "fase de contenção", mas há momentos em que a vermelhidão se espalha pela tela, vide o batom rubro nos lábios de Tilda Swinton. Essa vermelhidão não arrefece o que existe de melancólico na narrativa - pelo contrário, exalta essa sensação.

A trilha perseguida aqui evoca um dos títulos menos festejados do artesão autoral manchego: "Julieta" (2016). É um exemplar típico do "almodrama". Quem cunhou esse termo foi o baiano Caetano Veloso, ao se referir à estética de seu amigo ibérico. Existe ainda um outro conceito para definir a estética de Almodóvar: metamelodrama. O verbete é parte das pesquisas de dramaturgia feitas pelo professor (também da Bahia) José Carvalho, considerado o mais prestigiado teórico sobre roteiro no Brasil, que leciona como escrever para cinema e TV no Rio e em São Paulo na Oficina Roteiraria. Com base nas reflexões antropológicas do americano David Bordwell e nos ensaios geopolíticos do português João Maria Mendes, Carvalho consolidou o princípio do "metamelodramático". Ele parte da ideia de que o realizador de "Má Educação" (2004) cria seu universo com base no tecido visual "vivo" derivado do melodrama clássico e de suas releituras modernas, de Douglas Sirk a Rainer W. Fassbinder. De fato, o cálido "Julieta" tirava sua percepção da condição feminina de "lições" que o cinema do passado nos deu, potencializadas por um diálogo com a literatura de Alice Munro. "O Quarto ao Lado" faz o mesmo, visitando Bergman... e arrastando Hopper como uma âncora geográfica, como a afirmação de sua medula americana.

Não se trata de um Almodóvar in Spanish, que habla a língua da Espanha, e, sim, um filme em língua inglesa, como foram "A Voz Humana" (2020) e "Estranha Forma de Vida" (2023). Trata-se também de um exercício de elegância pleno, formalmente mais depurado do que Pedro A. jamais foi. Pode-se até falar no adjetivo "sereno" no trânsito do longa pelo código histórico do melodrama. A recorrência dos verbos "perecer" e "partir" na espinha dorsal do enredo é uma justificativa para os takes de luz mais outonal na fotografia de Edu Grau, que filtra o olhar barroco habitual do mestre por trás de "Dor e Glória" (2019).

As elipses, marcas gramaticais da obra de Almodóvar, vão e voltam ao longo da narrativa, na montagem de Teresa Font, que ferve no terço final, sobretudo numa sequência (de virada no roteiro) em que um policial de credo fundamentalista (Alessando Nivola) entra em cena. A trilha sonora, composta por Alberto Iglesias, também aquece o estudo sobre cumplicidade que se desenrola no enredo.

Tudo parte do processo de (re)aproximação de duas amigas há muito distantes. No meio do lançamento de um livro novo, a escritora de autoficção Ingrid (Julianne Moore) descobre que a correspondente de guerra Martha (Tilda Swinton), de quem era íntima, está muito doente, com câncer. Elas trabalharam juntas na mesma revista, mas Ingrid tornou-se uma romancista, enquanto Martha consagrou-se em coberturas jornalistas de confrontos armados.

O reencontro delas é doce e revive muitas histórias. A melhor delas envolve um fotógrafo, que era parceiro de trabalho da repórter - papel dado a Juan Diego Botto -, e o um padre (o ótimo Raúl Arévalo). Muitos causos são trocados até que a quimioterapia de Martha deixa de surtir efeito. Ali, a personagem de Tilda decide toma ruma pílula que acabe com a vida - com dignidade, sem sofrimento. O medo e a solidão do fim fazem com que ela peça ajuda à antiga colega, uma vez que várias outras amigas lhe recusaram o auxilio. Para isso, as duas têm de ficar juntas numa casa, no campo, isoladas. É nesse momento que a autora vivida por Julianne se abre para um oceano de inquietações existenciais, extraindo da atriz um desempenho inquietante. A questão moral e até certo ponto criminal (segundo a Lei, nos EUA) não incomoda Ingrid. O seu incómodo é ver alguém de que gosta (muito) partir. A atuação colossal de Julianne é amplificada na troca com uma figura que galvaniza os combates filosóficos e sentimentais do filme: seu ex-amante e atual amigo, Damian, um autor de ensaios teóricos interpretado por John Turturro em estado de graça.

É ele quem vai ajudar Ingrid a se preparar para o torvelinho afetivo que virá com a despedida de Martha (se esta for possível, e viável). Damian é um caminho para que Almodóvar fale de eutanásia a partir da acomodação (de feridas, de desilusões), com citações explícitas à prosa de James Joyce (1882-1941) e a uma obra-prima que John Huston (1906-1987) filmou a partir da literatura dele, "Os Vivos e os Mortos", de 1987. Igualmente tocante é uma menção a Buster Keaton (1895-1966) e ao seu humor cinemático. São referências a paixões de um contador de histórias que desde "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999) alcançou o Panteão.