Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Flávio Frederico: 'Eu me sinto um arqueólogo de arquivo'

'Alma Negra', de Flávio Frederico, faz um balanço da importância dos bailes black para a resistência decolonial | Foto: Divulgação

Quando "Alma Negra, do Quilombo ao Baile" teve projeção aberta ao público no Festival do Rio, na manhã de 11 de outubro, num Odeon recheado de gente, tinha uma galera saltitando na cadeira, ensaiando passinhos mesmo sentada nas poltronas da Cinelândia, requebrando ao som que embala os planos costurados pelo cineasta Flavio Frederico. Suingue similar há de se repetir nesta quinta-feira, na projeção do .doc esta noite, na 48ª Mostra de São Paulo, às 19h, no Circuito SPCine.

Haverá uma outra projeção no dia 28, às 17h, no Espaço Augusta 2, onde reflexões de intelectuais essenciais para as lutas antirracistas (Beatriz Nascimento, Lélia González e Edneia Gonçalves) hão de contagiar a plateia tanto quanto as vozes de Tony Tornado, Cassiano e divos afins do soul.

Realizador premiado tanto no .doc (venceu o festival É Tudo Verdade 2006 com "Caparaó") quanto na ficção (Melhor Direção no CinePE 2012 por "Boca"), Frederico volta à telona num mergulho no universo afro-brasileiro por meio da música soul, retratando desde a chegada do ritmo ao país, no fim dos anos 1960, até o ápice dos bailes black no RJ e em SP.

A dimensão musical do longa - eletrizante - pavimenta uma discussão identitária decolonial, que adquire múltiplas perspectivas no roteiro escrito por Mariana Pamplona e pelo diretor, que também assina a montagem.

Seu cinema tem uma forma muito peculiar de depurar arquivos buscando verdades nas entrelinhas nos registros. No caso de "Alma Negra", o dispositivo ligado ao passado, sobretudo do movimento soul e da cultura quilombola, evoca uma luta decolonial. Como chegar àquelas imagens dos bailes e de seu entorno?

Flavio Frederico: Realmente, eu me sinto uma espécie de arqueólogo de arquivo. O chefe de pesquisa desse filme é o Remier Rocha, que é um grande pesquisador do Rio. A imagem de arquivo, no documentário, é um dispositivo tão importante quanto o material filmado, em especial em .docs históricos. Nesse novo filme, a gente encarou um problema: no Brasil, tem poucos acervos organizados. Com isso, a gente se depara com aquelas mesmas imagens que já viu antes. Como a gente começou a fazer esse filme em 2014, deu tempo para ir aparecendo coisas novas, como o material do Tony Tornado, do Cassiano. Desde o início, estava obstinado com a ideia de usar outros filmes de ficção, documentários ou híbridos, que foram feitos ali nos anos 1970, e tivessem a ver com a temática dos bailes, seja na ótica antirracista, seja a perspectiva do quilombo. Acho que esses são os três temas principais do filme. O soul e os bailes black, o mesmo capítulo; a questão dos quilombos e da nossa herança africana; e a questão da luta antirracista no Brasil. A gente queria dar voz a expressões culturais e artísticas, fora a música, porque a música fala por si.

Assumindo seus filmes anteriores, como "Boca" (2010), como parâmetro, você parece ser guiado por uma arqueologia das cidades, das vivências metropolitanas. Que componente a música assume na operação arqueológica que você levanta em "Alma Negra"?

Tenho um trabalho muito relacionado ao lugar e à cidade. O primeiro vestibular que prestei foi para Cinema, e não entrei. Fui fazer Arquitetura, que eu amo. Então, entrei na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), depois que transferi para Cinema, porque eu estava insatisfeito. Trabalhei como fotógrafo um pouco, antes de fazer filmes. Eu tenho essa coisa com urbanismo mesmo, com lugar, com a geografia do lugar, e isso tá muito presente na minha obra. Meu primeiro longa, "Urbânia", é um filme sobre a urbe, sobre São Paulo, e o "Boca" vem de novo com isso. Em "O Assalto na Paulista", a avenida é personagem. No caso do "Alma Negra", São Paulo e Rio eram centros dinâmicos desse movimento, com outros polos importantes, principalmente em Porto Alegre, BH e Salvador, mas não cabia tudo isso no filme. A massa mesmo estava em Rio e São Paulo. O filme tem essa peculiaridade de abordar esses dois ambientes. A gente sendo aqui de São Paulo trouxe um olhar bem profundo para a questão da cidade. A metrópole tá muito presente nele.

Qual é o reflexo dos bailes black da soul music de ontem na cultura dos Racionais e do hip-hop em geral de hoje?

Eles são a fonte. A cultura hip hop nasce disso. Se você fizer o organograma da soul music, que a gente mostra muito bem no filme, ela nasce lá com gospel, quando se junta com o rhythm & blues, numa coisa meio paralela ao rock. Depois, quando vem a disco, ali é o momento em que explode a cultura hip hop. Os Racionais vêm disso aí, o Thaíde vem disso aí, o funk carioca vem disso aí. Só que é uma outra pegada. O mundo mudou. A grande revolução foi a bateria eletrônica, a tecnologia.