Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Nas ondas de Nicolas Cage

Pegando onda na Austrália, o astro Nicolas Cage vem arrebatando plateias dos festivais internacionais com o thriller 'The Surfer', destaque na programação da Mostra Internacional de Cinema de SP | Foto: Divulgação

 

Entre os muitos momentos enervantes do thriller "The Surfer", em exibição na Mostra de São Paulo nesta segunda, às 13h, no Cinesystem Frei Caneca, nada cria mais angústia do que uma sequência de brutalidade envolvendo um copo de café, quando seu protagonista, um sujeito sem nome vivido por um endemoninhado Nicolas Cage tenta dar um golinho na bebida quente após uma excursão por um inferno feito de areia.

Sob a direção tensa de Lorcan Finnegan, esse suspense - que terá mais uma projeção em SP na terça, às 17h45, no Espaço Augusta - ganhou uma salva de aplausos consagradora em sua estreia internacional, no Festival de Cannes, em maio. A Croisette matou as saudades de ver Cage em sua telona mais nobre, a do Palais des Festivals, onde ele apareceu tentando pegar onda na Austrália, cercado por valentões.

Por onde passa, essa trama sobre a cultura do surfe arrebata fãs. Sua carreira começou ao mesmo tempo em que seu astro renovou sua popularidade ao estrelar "Longlegs - Vínculo Mortal", que se transformou no maior êxito recente de sua carreira, com quase US$ 110 milhões em sua arrecadação.

Comparado a "O Silêncio dos Inocentes" (1991), essa produção de Osgood Perkins escala o astro de 60 anos no papel de um serial killer assombroso, apelidado por si mesmo de Longlegs, que é caçado pela agente do FBI Lee Harker (vivida por Maika Monroe). O desempenho de Cage arrancou elogios em uníssono da crítica internacional.

Seu regresso aos holofotes do circuitão americano e à cena dos festivais (com "The Surfer") fez com que um cult recente da carreira do ator, considerado por parte da crítica seu melhor trabalho nos anos 2010, fosse redescoberto pelas plataformas de streaming: "Mandy - Sede de Vingança" (2018). É possível vê-lo hoje na Amazon Prime, por aluguel ou compra.

Afogado em dívidas por conta de um acordo de separação que lhe custou milhões de dólares, Cage vinha no piloto automático há anos, somando um filme ruim atrás do outro, até "Mandy" aparecer. Embora seja B (de bruto) até o osso, com litros de sangue a espirrar pelas telas, o thriller sobrenatural de Panos Cosmatos foi ovacionado por público e crítica no 71º Festival de Cannes, onde foi exibido na mostra Quinzena de Cineastas. Sua sanguinolência é gourmetizada por uma fotografia de alto requinte, capaz de valorizar as cores berrantes de sua linguagem de videoclipe até gerar uma experiência sensorial rara.

Cage, que vinha em estado de letargia, dá uma performance em estado de graça, doida, selvagem como fazia nos tempos de "A Outra Face" (1997), num tempo em que reinava sob Hollywood. "Existem sofrimentos em todo personagem e é isso o que me atrai na arte de atuar: dar voz a essas cicatrizes", disse Cage, lá atrás, em 1996, quando ganhou o Oscar por "Despedida em Las Vegas".

Ele retomou o discurso com "Mandy", que ganha uma sobrevida mundo afora depois da boa aceitação de "Longlegs - Vínculo Mortal" e "The Surfer". Todos querem Cage em papéis enraivecidos.

À época da passagem de "Mandy" por Cannes, ele não foi à Quinzena, mas fez um discurso existencialista similar nas sessões desse filmaço no Festival de Sundance, nos EUA. No longa de Cosmatos, ele é um serralheiro cuja companheira é morta por uma seita hippie que cultua o Mal. Há integrantes dessa igreja com feições de monstro, mas ao escapar deles, Cage vai partir para uma vingança usando um machado de prata e uma serra elétrica sedenta pelos coágulos alheios. Falando assim... parece um filme trash... e é... mas um trash de autor, com um requinte plástico que muitos longas-metragens europeus ou asiáticos de Cannes não têm.

"Eu passei toda a adolescência jogando RPG, lendo HQs, vendo filmes B e ouvindo heavy metal. Isso acabou saindo em 'Mandy', brotando de dentro de mim", disse Cosmatos ao público da Quinzena de Cannes, que aplaudiu seu longa umas seis vezes durante a projeção. "Há algo de muito pessoal nesse filme: pois escoa por ele a dor da morte do meu pai. Comecei a escrever o roteiro em 2006, um ano depois que ele morreu".

Morto em 2005, o pai de Panos é ninguém menos do que George Pan Cosmatos, diretor de iguarias do cinema de ação como "Stallone Cobra" (1986), recentemente exibido (e debatido) na Cinemateca Francesa, em Paris.

O desenho do personagem de Cage é similar aos dos heróis politicamente incorretos daquele tempo. Marola similar o cerca em "The Surfer", que há de subir as taxas de adrenalina nas veias da Mostra.

Hoje, nas plataformas de streaming ao alcance de um clique do público brasileiro, é possível curtir os faniquitos selvagens de Cage em "O Espelho" (2020), de Tim Hunter, na Amazon Prime, e em "Sangue no gelo" (2013), de Scott Walker, na Netflix.