Estonteada por panorâmicas raras vezes clicadas das montanhas nepalesas, cobertas por uma malha de gelo, a Berlinale torcia nervosamente para que a empreitada da jovem Pema pelas mais inóspitas paisagens de sua pátria resultasse em sucesso, em felicidade e, quiçá, num Urso de Ouro.
A personagem interpretada por Thinley Lhamo, uma futura mamãe com a barriga no ápice da gestação, tornou-se a heroína mais destemida do Festival de Berlim e tende a ganhar o mesmo status em solo carioca, onde suas aventuras, em nome do amor, serão conhecidas nesta segunda-feira (7), às 20h45, com a projeção de "Caminho da Vida" ("Shambhala"), no Cinesystem Botafogo 2.
Nascido há 40 anos no distrito de Mugu, província de Karnali, Min Bahadur Bham é quem as peripécias de uma mulher contra uma natureza inóspita, movida pelo desejo de encontrar seu marido desaparecido, com a ajuda de um jovem monge, não por acaso chamado Karma, que se apaixona por ela. O cineasta já havia despontado sob os olhares da crítica com seu longa anterior, "Nas Estradas do Nepal", premiado no Festival de Veneza de 2015.
Na entrevista a seguir, concedida ao Correio da Manhã em Berlim, Bahadur explica o desafio de transpor a barreira da antropologia ao mapear uma cultura pouco familiar ao Ocidente na narrativa de tintas metafísicas que leva nesta segunda ao Festival do Rio. Há mais sessões de "Caminho da Vida" agendadas para quinta, às 14h15, no Estação NET Rio 4, e para sábado, às 18h40, no Estação NET Gávea 4.
Qual é a imagem que o cinema internacional fabricou do Nepal e que imagens você leva às telas com "Caminho da Vida", que vai representar sua nação na briga por uma vaga na disputa pelo Oscar?
Min Bahadur Bham: Eu tenho a vivência das montanha, como todos do meu povoado natal, Bhambada, em Mugu. Entendo o que muita gente busca com suas câmeras quando passa por lá e vê a paisagem, mas não há como se falar de uma cultura só mostrando sua geografia física, sem abrir discussões sociais. Eu deixei a minha aldeia aos 15 anos e fui ganhar o mundo. Levei comigo a lembrança da descoberta do cinema, que me foi apresentado pelo meu pai, quando ele conseguiu arranjar um equipamento de projeção e levou até nossa vila. Lembro de ver filmes ao lado de meus irmãos e amigos, maravilhado. Foi uma descoberta da arte e de mim. Por isso, a minha forma de expressão pelas vias cinematográficas hoje se dá pelo esforço de conduzir meu elenco, repleto de atrizes e atores não profissionais das próprias locações, a manifestarem seus valores internos diante da câmera. Eu não nego a dimensão etnográfica do meu filme nessa perspectiva de direção. Há uma voz cultural se expressando ali.
O que a jornada de Pema expressa sobre a condição feminina do Nepal de hoje?
A mobilidade territorial é parte de nossas vidas naquela região. Pema faz uma jornada que é parte de nosso ritual de sobrevivência, mas desafia a condição social de ser rotulada como "dona de casa", presa ao lar, para buscar seu amor. Há a convenção cultural de ir atrás de um marido que sumiu, mas, pouco a pouco, em sua coragem, ela vai se desapegando desse objetivo e embarcando numa jornada de iluminação. Eu queria que a viagem pela montanha fosse um rito de encontro com a essência espiritual. Há uma travessia externa que converge numa travessia interna. Há espiritualidade na andança.
Qual foi a maior dificuldade nas filmagens?
Rodamos num perímetro fronteiriço com o Tibete e só havia a chance de uma refeição por dia, por nosso cronograma de ação e pela adequação às práticas culturais de um terreno onde se gasta muita energia no deslocamento no frio entre as pedras, no esforço de se cruzar rios.
Como você encara a produção cinematográfica do seu país hoje?
Tenho a sensação de que a gente está vivendo uma espécie de Nova Onda, pois só na Berlinale havia um grupo de mais cinco cineastas nepaleses mais jovens do que eu.
O Festival do Rio 2024 segue até o dia 13.