Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Eternamente Jabor

Jabor morreu em fevereiro de 2022 deixando um legado de sucesso no cinema, na TV e nas livrarias | Foto: Reprodução TV Globo

Ganhador do Grande Prêmio do Festival de Pesaro, na Itália, em 1967, "A Opinião Pública" serviu como um cartão de visitas - tanto para o sucesso, quanto para a agitação cultural - na trajetória de Arnaldo Jabor (1940-2022) rumo à consolidação de uma trajetória autoral que se pavimentou a partir da demolição das vigas moralistas da sociedade brasileira. Vai ter um par de projeções desse marco da não ficção latino-americana no Festival do Rio 2024, que abre suas alas nesta quinta-feira (3). Tem exibição no sábado (5), às 19h15, no Estação NET Rio 2, e no dia 16, às 14h30, no Estação NET Rio 5.

É um reencontro com um exercício de ferina provocação, que faz parte da seção de clássicos restaurados da mostra A Cinemateca É Brasileira, da qual fazem parte ainda: "Greve" (1979), de João Batista de Andrade; "Eles Não Usam Black-Tie" (1981), de Leon Hirszman; e "O Que é Isso Companheiro" (1997), de Bruno Barreto, em homenagem aos 60 anos da produtora LC Barreto.

O caso de Jabor, contudo, é um capítulo à parte, a começar do fato de o centro nervoso da maratona carioca, o Circuito Estação, ter feito sua arrancada, lá na década de 1980, graças à boa acolhida popular a "Eu Sei Que Vou Te Amar", que levou Jabor à competição pela Palma de Ouro de Cannes. Fora isso, ele abriu o Festival de 2010 com "A Suprema Felicidade".

Em "A Opinião Pública", que iniciou sua carreira em 1966, vemos um painel das vicissitudes da classe média. A redescoberta desse cult é uma forma de o Festival do Rio matar as suas (e as nossas) saudades de Jabor. Um dos maiores campeões de bilheteria do cinema brasileiro entre os anos 1970 e 80, com filmes que lotavam salas exibidoras apesar de fugirem das fórmulas comerciais do audiovisual deste continente, naquela época de farda, com ditaduras por todo o lado, o diretor carioca morreu no dia 15 de fevereiro de 2022, em decorrência de complicações de um AVC. Continua na página seguinte

 

Um cronista das hipocrisias brasileiras

Cena de 'A Opinião Pública', de Arnaldo Jabor | Foto: Divulgação Festival do Rio

Arnaldo Jabor partiu com a fama de ser uma espécie de cronista das hipocrisias brasileiras. Um cronista que usava a câmera para filmar ensaios sarcásticos sobre hecatombes morais e transformava suas incursões na TV em performances meio clown, meio escolástica, transformando o "Jornal da Globo" numa Ágora para seu saber. Saber que ele embebia em tinta em suas crônicas para grandes jornais, depois condensadas em livros.

Em nossas livrarias, ele foi um mega-seller, tornando-se presente de Natal para leitores que ganhavam seu "Amor É Prosa, Sexo É Poesia" de regalo. Lá fora, teve, como cineasta, o reconhecimento que muitos realizadores sonham alcançar. O Urso de Prata que recebeu no Festival de Berlim de 1973 por "Toda Nudez Será Castigada" foi um atestado internacional de sua perspicácia para falar sobre a ruína de valores da "família tradicional brasileira".

Família essa que ele voltaria a criticar no longa que é considerado sua obra-prima, "Tudo Bem", ensaio etnográfico sobre a derrota de nossa ética, laureada com o troféu Candango de Melhor Filme, do Festival de Brasília de 1978. Naquela abrasiva dramédia à moda Ettore Scola (digna de "Feios, Sujos e Malvados"), o canto do uirapuru, um pássaro estudado como símbolo de brasilidade, era o ponto de partida para um debate feroz sobre a perda da identidade nacional, travado a partir do apodrecimento de um clã aristocrático (ou quase), em meio a uma obra que não termina.

Com "A Opinião Pública", Jabor conectou-se com o projeto estético e político do Cinema Novo, um movimento que, de 1962 a 1969, uniu uma geração de jovens realizadores (como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cezar Saraceni, Cacá Diegues e Leon Hirszman) em torno do sonho de reinventar a representação do país e revolucionar politicamente nossa arte, revisando nossa História. Aquele espírito revisionista de revolução se fez presente em seu primeiro longa, "Pindorama", que rendeu a Jabor uma indicação à Palma de Ouro em 1971. Ele voltaria a concorrer em Cannes com o já citado "Eu Sei Que Vou Te Amar", que rendeu o troféu de melhor atriz para Fernanda Torres, em arrebatadora interpretação.

Há um projeto dele que foi rodado, mas segue inédito nas telas, chamado "Meu Último Desejo". O longa conta a história do Doutor (Michel Melamed), um ex-político influente, ministro, hoje solitário e preso a uma cadeira de rodas, que vive cercado por um passado misterioso, cheio de sombras. Quem cuida dele é Lu (Bella Piero), uma enfermeira com o sonho de ser atriz. José (João Miguel) é outro cuidador, recém-contratado. Atormentado, Doutor planeja delatar crimes de corrupção e seus antigos parceiros políticos passam a planejar seu assassinato.

Quem sabe com a volta de "A Opinião Pública" às telonas, alguém não se anima a lançar esse Jabor que ninguém viu.