Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

José Luis Rebordinos: Contraindicações do hedonismo

Demi Moore volta ao estrelato no papel de uma atriz decadente que recorre a uma fórmula para se renovar | Foto: Divulgação

 

Num trecho do livro "O Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX", de 1984, a zoóloga e filósofa americana Donna J. Haraway afirma: "As máquinas do final dos anos 1900 tornaram completamente ambígua a diferença entre natural e artificial, mente e corpo, autodesenvolvimento e design externo, e muitas outras distinções que costumavam ser aplicadas a organismos e máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas, e nós mesmos somos assustadoramente inertes".

Esse parágrafo poderia ser a sinopse do filme ganhador do prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cannes de 2024: o virulento "A Substância" ("The Substance"). Sua engenharia não é metálica, é de carne. Uma carne que se molda ao bel-prazer da cultura da celebridade como se fosse uma placa de aço transcendendo em forma de escultura. As interferências realizadas no organismo que protagoniza seu enredo não se baseiam em ferro fundido, e sim, num soro, num remédio, o que não exclui a analogia com o pensamento de Haraway, centrado em qualquer "ajuste" não biológico num corpo, em qualquer "muleta" que nos tire do limite demasiadamente humano. É o que se passa com a atriz e apresentadora Elisabeth Sparkle, personagem que devolve Demi Moore a uma ribalta que ela perdeu faz tempo - injustamente.

Alinhada com o chamado body horror, filão (bem) lapidado pelo canadense David Cronenberg ("A Mosca") e renovado pelo polêmico "Titane" (Palma de Ouro de 2021), essa vertente (cult) do cinema fantástico explora entranhas, artérias, tecidos corporais, músculos, fluídos. Segundo Cronenberg: "Todas as verdades estão no corpo. Temos frio na barriga quando em pânico. Temos febre ao sentir uma infecção. Trememos com ansiedade. O corpo flagra tudo, expõe o que encobrimos". Nessa lógica, somada ao olhar de Haraway, o longa dirigido (num frenesi crescente) pela francesa Coralie Fargeat (de "Vingança") fala do sucateamento físico (e antes dele o sucateamento moral) de uma estrela que, aos 50 anos, perdeu a vez na TV. Ao ser descartada, ela faz um pacto com um demônio que se traveste de progresso: a Ciência.

Agendado para projeções no Festival de San Sebastián esta noite, brigando pelo prêmio de público na mostra Perlak, "A Substância" ("The Substance"), já em cartaz, narra a bizarra transformação por que Sparkle passa ao aceitar se submeter a um experimento. Ao ser desligada da emissora onde brilhava num programa de aeróbica, a mando de um executivo de hábitos grotescos (Dennis Quaid, hilário), ela recebe um convite para provar de uma fórmula sintética capaz de rejuvenescê-la. Sem nada a perder, ela prova do tal líquido (injetável) e passa por uma dolorosa mutação que a torna uma moça bem jovem. Essa figura, vivida pela ótima Margaret Qualley (de "Stars At Noon" e da série "Maid"), ganha o nome de Sue. A exuberância em seu olhar e sua destreza na ginástica fazem dela uma coqueluche midiática, tomando o posto que era de Sparkle. As duas deveriam ser uma só, mas acabam por desenvolver personalidades (e vontades) distintas, numa fratura de psique. É Médica e Monstra, Dra. Jekyll e Mrs. Hyde.

Essa rachadura é parte de uma contraindicação do tal soro: o certo era que elas trocassem de lugar, sempre, a cada sete dias, injetando-se novas doses. Se essa exigência de data não for cumprida, efeitos nefastos hão de ocorrer. O mais simples dele é o aumento da agonia no processo de morfismo delas. Há consequências mais graves como a escassez gradual da lucidez e a aparição de sequelas físicas, com marcas, pústulas e monstruosidades diversas. Como bem disse Cronenberg, é a verdade do descalabro se desnudando.

O que começa como um tenso estudo filosófico da vaidade descamba (com vigor) para um terror acelerado, numa metáfora para as criaturas que brotam das faltas de limite no hedonismo nosso de cada dia. Seu trabalho taquicárdico de montagem (construído numa edição feita a seis mãos por Caroline, Jérôme Eltabet e Valentin Feron) jamais deixar a narrativa perder o ritmo, nem abrir mão de sua natureza reflexiva. O carisma de Demi, reciclado, ajuda o longa a cativar plateias e abre um debate (extra fílmico) sobre o prazo de validade de carreiras que um dia arrebataram Hollywood.

A coprotagonista de "Ghost" (1990), que desafiou tabus em "Striptease" (1996), já teve a Meca do cinemão das mãos, mas acabou sendo escanteada conforme avançava na idade, por novas primaveras. O novo viço que essa produção dirigida por Caroline lhe garante é um convite a um debate sobre a mecânica do descarte na indústria do entretenimento. Haraway afirma que os ciborgues se mecanizam para durarem mais, para desafiar a finitude e enganar o Tempo. Mas uma coisa é o tempo da Natureza, outra coisa é o tempo do capitalismo (sobretudo aquele que legisla sobre o cinema). É contra esse Mal que Demi agora insurge, em estado de graça.