Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA CINEMA - MOTEL DESTINO: Silêncios que precedem o esporro

Motel Destino | Foto: Divulgação

Pouca coisa é dita - de sincero - entre os personagens de "Motel Destino", embora desabafos se apinhem aqui e acolá, revelando por palavras (entre dentes) e por sibilos os abismos dos personagens que se triangulam no thriller erótico que representou o Brasil na disputa pela Palma de Ouro de Cannes de 2024. Os silêncios que se fazem impor entre gemidos, por vezes gritos, dizem mais do que verbos cuspidos com raiva ou com passionalidades frustradas. Só o que não falta ali é areia, pois a geografia ajuda.

Tem sempre areia nas camas da hospedaria que dá nome ao filme de Karim Aïnouz. É um lugar de passagem para amores fugazes, localizado à beira de estrada numa praia paradisíaca do Ceará. É Dayana quem mantém a organização dos quartos daquele motor hotel. Ela ri quando fica nervosa. Ri quase em desatino quando o perigo se aproxima, mas sabe zangar com clientes que inventam desculpas, fazem orgias sem limites ou inventam motivos para não pagar contas.

Chegou a pensar que esse era o caso de Heraldo, um dos protagonistas do longa, quando o rapaz, incapaz de arcar com suas dívidas, alegou ter sido roubado pela moça com quem passou a noite, antes de adormecer. Por pior que pareça, o sujeito falava a verdade. Não toda. Ele não contou, por exemplo, que está jurado de morte e que acabou de ter seu irmão assassinado. Por ser um matador de aluguel, ia matar um francês que mora na região, a mando de sua chefe, conectada a uma organização criminosa, mas negou fogo, ou melhor, atrasou-se para a missão - o que deu ruim... muito ruim.

Mesmo sem ter a dimensão de quem o rapaz seja ou do que pode fazer, Dayana se encanta por ele e tenta disfarçar o desejo que sente pelo garotão de seu companheiro (e misto de chefe), Elias. Esse é um papel que pode dar a Fábio Assunção uma consagração há muito merecida na telona.

A vontade que Dayana tem de se livrar desse homem que só lhe trata bem quando quer algum chamego é grande. Ela sabe, entretanto, que tem direito a um percentual alto no faturamento do Destino, pois, afinal, trabalhou duro para isso. O problema é como tirar Elias do jogo. Pode ser que Heraldo seja a solução, num enredo típico de filmes como "O Destino Bate À Sua Porta" (1981), de Bob Rafelson, e "Obsessão" (1943), de Luchino Visconti.

Até o questionamento de como descartar Elias vir à tona, Dayana já arrebatou a plateia do novo filme de Aïnouz, graças ao desempenho inquieto e cativante de sua intérprete, Nataly Rocha. Seu modo franco de falar a encaixa num rol de personagens nacionais que se expressam sem filtros, sendo direta e cortante. Igualmente arrebatador é o desempenho de Igor Xavier como Heraldo, um sonhador que anseia pela chance de ter sua oficina mecânica em São Paulo, deixando a rotina cearense para trás. Já Elias só pensa em ampliar seu motel. Vai para Fortaleza comprar brinquedinhos eróticos e pensa em obras para poder melhorar o atendimento. Ele só não pensa no bem-estar de Dayana. Nem é capaz de imaginar o plano digno de um filme dos Irmãos Coen (como "Gosto de Sangue" ou "Fargo") que se desenha ao seu redor, pondo sua cabeça numa guilhotina.

Apoiado na caleidoscópica fotografia da francesa Hélène Louvart (de "Disco Boy"), Karim deu a Cannes um filme surpreendente, que se inscreve nos códigos do thriller noir (sobretudo o dos anos 1980), ao mesmo tempo em que presta um tributo à pornochanchada - embora sem humor. Está mais próximo do cinema à flor da pele de Fauzi Mansur ("A Noite do Desejo") do que dos clássicos erotômanos com Carlo Mossy ou David Cardoso.

Fiel à estética de pulsões que vem de "Madame Satã" (2002) e se depura em "Praia do Futuro" (2014), Karim se (re)afirma autor num estudo delicado de personagem. Estudo esse que tenta compreender os resquícios de Brasil por trás de cada vértice de seu triângulo. Passa pela violência contra as mulheres, o crime organizado, a corrupção e o machismo, desconstruindo cada um desses males no roteiro escrito com Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias. Visualmente, a direção de arte de Marcos Pedroso faz do motel Destino um quarto - e vivíssimo - personagem, que serve de microcosmos para abismos onde ainda estamos enfiados, e se ampliaram na era Bolsonaro.