Seis meses depois de ter conquistado o Grande Prêmio do Júri da Berlinale 2024 com "A Traveler's Needs", o sul-coreano Hong Sangsoo, considerado o mais prolífico cineasta autoral da atualidade, parte para a Suíça, com a incumbência de encerrar a seleção competitiva de outro dos mais prestigiados festivais do mundo: Locarno. Na noite desta sexta-feira (16), plateias helvéticas hão de aplaudir (e se inquietar com) "By The Stream", segundo longa-metragem do diretor neste ano.
É um dos títulos mais esperados da competição pelo Leopardo de Ouro, na qual um dos principais destaques é uma prata da casa: "The Sparrow in the Chimney", de Ramon Zürcher, sobre o (des)acerto de contas entre irmãs.
Na trama de Sangsoo, uma professora chamada Jeonim pede a seu tio que dirija um esquete teatral a ser apresentado pelo departamento de sua escola. Todos os dias, Jeonim vai a um riacho próximo para desenhar e tentar entender seus padrões. Seu tio decide dirigir o esquete por causa de suas lembranças de ter se apresentado nessa mesma universidade 40 anos antes. Surge um incidente escandaloso entre os alunos, e Jeonim e seu tio acabam se envolvendo. As marcas básicas da estética minimalista do realizador estão todas lá: falação, contemplação de situações banais do dia a dia, dilemas existenciais.
"Eu filmo situações do dia a dia que são simples. Não preciso de efeitos especiais. Eu mesmo opero a câmera. Só preciso de alguém para captar o som. Com isso, o orçamento é pequeno. A montagem fica por minha conta também", disse Sangsoo ao Correio da Manhã antes das filmagens de "A Traveler's Needs", ao lançar "Lá Em Cima" ("Walk Up"), no Festival de San Sebastián na Espanha. "Nem tudo o que aparece em cena precisa de uma explicação ou de uma conexão direta com a narrativa. Eu posso ser capturado pela imagem de um gato correndo, registrá-la e supor que faz sentido estético tê-la na edição de uma história que é absolutamente alheia àquele animal. Ele está ali só por fazer parte do mundo, por ter me oferecido um momento que, filmado, gera um sentido artístico".
Aos 63 anos, Sangsoo (seu sobrenome é grafado Sang-soo ou Sang-Soo em alguns eventos) aposta num tipo de narrativa que não é capaz de agradar com unanimidade, apesar de ter entusiasmado a curadoria de Locarno, chefiada por Giona A. Nazzaro. Nada desse incansável fazedor de longas-metragens é unânime. Apesar disso, é surpreendente a habilidade que Sangsoo tem de criar, e não só na direção. Ele filma, escreve, fotografa, edita, compõe a trilha sonora e produz. Sua Jeonwonsa Film Co. Production consegue dar conta de sua estética enxuta.
No dia em que lançou "A Traveler's Needs" na Berlinale, sua protagonista, Isabelle Huppert, deu uma definição curiosa para o modo como ele trabalha. "Hong não trabalha com roteiro, nem com enredo definido. A gente vai criando no processo, em tramas bem-humoradas, mas carregadas de uma certa melancolia", disse a diva europeia, que trabalhou com ele antes em "A Câmera de Claire" (2017) e "A Visitante Francesa" (2012). "Neste novo encontro nosso, eu até levei a roupa da personagem. O problema foi ter que tomar o Makgeolli, uma bebida típica com aspecto de leite, doce, mas... forte. Eu não bebo... quer dizer, só bem pouco".
Este ano, na competição oficial de Locarno, há outro gigante asiático: o chinês Wang Bing. Ele concorre com o documentário "Youth (Hard Times)". Foi selecionada uma coprodução do Brasil com a Alemanha, a França, a própria Suíça e a Tailândia chamada "Transamazonia", com direção da sul-africana Pia Marais. Integram ainda o certame títulos como "Timestalker", de Alice Lowe e "Bogancloch", de Ben Rivers. Essa turma será julgada por um time presidido pela cineasta austríaca Jessica Hausner (de "Clube Zero").
Para as sessões da Piazza Grande, a praça central da cidade, Nazzaro convocou o mais premiado dos longas-metragens do último Festival de Cannes: o iraniano "The Seed of The Sacred Fig", do iraniano Mohammad Rasoulof. O filme saiu da Croisette com o Prêmio Especial do Júri, o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio da Crítica. O cineasta está condenado à prisão em sua terra natal pelas críticas de seus filmes ao regime vigente por lá, mas teve condições de prestigiar a projeção em Locarno.
Na trama, um juiz entra em paranoia ao se sentir perseguido e começa a se voltar de forma violenta contra suas filhas e sua mulher. "Venho de uma cultura submetida à tirania, pois o Estado Islâmico é capaz de tudo", disse Rasoulof em Cannes. "Por que meu governo tem tanto medo das histórias que contamos?".
Ao 52 anos, o realizador, egresso de Xiraz, precisou fugir de sua pátria para conseguir expressar sua voz autoral pelo mundo, tendo seu passaporte confiscado pelas autoridades do Irã, que o considera uma ameaça à integridade nacional. "Dei instruções à equipe para que terminasse o filme caso eu fosse preso. Quando a sentença de que eu seria detido saiu, fui para casa e me despedi das minhas plantas, depois dei um jeito de sair", explicou o diretor, que por já ter sido trancafiado antes conhecia meios não tão legais de escapar, por rotas alternativas que o levaram à Alemanha. "Este é um filme sobre doutrinação, sobre o que acontece quando você deixa alguém, ou alguma ideologia tomar conta de sua mente", disse o realizador, que ganhou o Urso de Ouro de 2020 com "Não Há Mal Algum". "Não tenho medo da intimidação".
Em suas retrospectivas, Locarno finaliza neste sábado uma homenagem aos cem anos da Columbia Pictures e exibe "Mulher de Verdade" (1954), de Alberto Cavalcanti (1897-1982). Em seu rol de tributos, o festival helvético destinou troféus honorários para a diretora Jane Campion e para a atriz Irène Jacob.