Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Hilariante e frenético, "Anora" pode ser chamado de comédia, pode ser encarado como um marco do cinema indie americano e pode, sem qualquer dúvida, fazer parte do panteão dos ganhadores do Festival de Cannes, depois de conquistar a Palma de Ouro de 2024. É uma Cinderela às avessas, acompanhando as confusões no qual uma profissional do sexo, que dança num clube privê, envolve-se depois de se casar com um jovem milionário russo. Seu diretor é Sean Baker, que nasceu em Nova Jersey há 53 anos e tem em seu currículo pérolas como "Tangerina" (2015) e "Projeto Flórida" (2017). A decisão foi deliberada no sábado por um júri presidido pela atriz e cineasta Greta Gerwig e formado pela roteirista e fotógrafa turca Ebru Ceylan; as também atrizes Lily Gladstone (EUA) e Eva Green (França); a diretora libanesa Nadine Labaki; o realizador espanhol Juan Antonio Bayona; o ator italiano Pierfrancisco Favino; o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda; e o astro francês Omar Sy.
Horas antes de o anúncio ser feito, o alemão Wim Wenders foi laureado com um Prêmio do Júri Ecumênico pelo conjunto de sua obra e disse uma frase que sintetiza o resultado do festival em 2024: "Nós, cineastas, não podemos mudar o mundo, mas podemos mudar a imagem que fazemos do planeta". Baker mudou. A maneira como ele fala de amor, com o riso como seu aliado, redesenha noções de princesas, príncipes encantados e prazer fugaz.
"Esse filme é para todas as trabalhadoras do sexo", disse o cineasta, que agora dispara já nas listas de potencial candidato ao Oscar para o ano que vem. Parece cedo para nós, mas para Hollywood não é, e Cannes passou a significar um canteiro de descobertas para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Mas a premiação de Greta não parou em Baker. O Grande Prêmio do Júri foi entregue ao filme indiano "All We Imagine As Light", de Payal Kapadia. É um tocante ensaio sobre solidariedade feminina em Mumbai.
O mais premiado dos longas-metragens em concurso foi o iraniano "The Seed of The Sacred Fig", do iraniano Mohammad Rasoulof. Ele ganhou o Prêmio Especial do Júri, o Prêmio do Júri Ecumênico e o Prêmio da Crítica. O cineasta está condenado à prisão em sua terra natal pelas críticas de seus filmes ao regime vigente por lá. Na trama, um juiz entra em paranoia ao se sentir perseguido e começa a se voltar de forma violenta contra suas filhas e sua mulher. "Venho de uma cultura submetida à tirania, pois o Estado Islâmico é capaz de tudo", disse Rasoulof em Cannes. "Por que meu governo tem tanto medo das histórias que contamos?".
Aos 52 anos, o realizador egresso de Xiraz precisou fugir de sua pátria para conseguir expressar sua voz autoral pelo mundo, tendo seu passaporte confiscado pelas autoridades do Irã, que o considera uma ameaça à integridade nacional. "Dei instruções à equipe para que terminasse o filme caso eu fosse preso. Quando a sentença de que eu seria detido saiu, fui para casa e me despedi das minhas plantas, depois dei um jeito de sair", explicou o diretor, que por já ter sido trancafiado antes conhecia meios não tão legais de escapar, por rotas alternativas que o levaram à Alemanha. "Este é um filme sobre doutrinação, sobre o que acontece quando você deixa alguém, ou alguma ideologia tomar conta de sua mente", disse o realizador, que ganhou o Urso de Ouro de 2020 com "Não Há Mal Algum". "Não tenho medo da intimidação".
Ao selecionar quem ganharia o láurea de Melhor Direção, o júri de Greta cravou o nome do português Miguel Gomes por "Grand Tour", É um estudo sobre as sequelas do colonialismo.
Nas categorias de Melhor Interpretação os vencedores foram o elenco feminino integral do musical "Emília Pérez" e Jesse Plemons, por "Tipos de Gentileza". Karla Sofía Gascón foi quem agradeceu pela vitória coletiva do melodrama cantado e dançado de Jacques Audiard, que levou ainda o Prêmio do Júri. Seu enredo fala sobre um chefão do tráfico que passa por uma transição de gênero. Plemons se divide em três papéis no longa de Yorgos Lanthimos.
Coralie Fargeat recebeu o prêmio de Melhor Roteiro pela excelência de sua dramaturgia no terror "The Substance", no qual uma estrela decadente (Demi Moore) passa por uma transformação ao se submeter a um tratamento exótico. A cada semana, seu corpo vai se transformando, até chegar a um limite de risco.
Em meio à premiação, George Lucas, o criador da franquia "Star Wars", recebeu uma Palma de Ouro Honorária pelo conjunto da obra como produtor, roteirista e diretor. "Eu me aposentei há dez anos, então não sei como andam as coisas com os streamings, mas quando eu fiz o primeiro 'Guerra nas Estrelas' era mais caro fazer um bonequinho de um personagem do que um filme", disse ele, referindo-se à febre de produtos com personagens como Darth Vader e Luke Skywalker. "Sou de uma geração que foi fazer cinema não porque queria ganhar dinheiro, mas porque queria fazer filmes".
Em outras latitudes, a mostra Un Certain Regard, criada em 1978 pra consagrar novos talentos de verve autoral, consagrou o chinês Guan Hu por "Black Dog", trama sobre a amizade entre um ex-presidiário e um cão. Na escolha das melhor direção dessa seção, Rungano Nyoni, da Zâmbia, foi laureada por "On Becoming a Guinea Fowl, em empate com o italiano Roberto Minervini por "The Damned". Seu júri foi presidido pelo cineasta canadense Xavier Dolan.
Coube ao cineasta francês Nicolas Philibert presidir o júri do prêmio L'Oeil d'Or, a Palma dos .docs de Cannes. Ganharam, em empate, "Les Filles du Nil", de Nada Riyadh e Ayman El Amir, e "Ernest Cole, Lost And Found", de Raoul Peck. O primeiro, vindo do Egito, fala da formação de uma trupe teatral só de mulheres. O segundo é uma aula de decolonização de um militante antirracista que resgata imagens feitas por um fotógrafo sul-africano que registrou o Apartheid in loco.
"O cinema que lida com arquivos quer preservar a memória e recuperar a História", disse Peck. "O documentário hoje vive uma demanda grande dos streamings, mas há um filtro muito forte das plataformas numa ingerência de formatos. Eu acredito num cinema livre. Faço filmes pela liberdade".
No cômpito geral de seu palmarês, o resultado final de Cannes fez jus ao pleito de Peck, pois imperou uma forma livre de expressão audiovisual
Premiação de
Cannes em 2024
PALMA DE OURO: "Anora", de Sean Baker
GRANDE PRÊMIO DO JÚRI: "All We Imagine As Light", de Payal Kapadia
PRÊMIO DO JÚRI: "Emilia Perez", de Jacques Audiard
PRÊMIO ESPECIAL DO JÚRI: "The Seed of the Sacred Fig", de Mohammad Rasoulof
DIREÇÃO: Miguel Gomes, por "Grand Tour"
ROTEIRO: Coralie Fargeat, por "The Substance"
ATRIZ: Elenco feminino de "Emilia Perez"
ATOR: Jesse Plemons, por "Tipos de Gentileza"
CAMÉRA D'OR (melhor filme de estreante): "Armand", de Halfdan Ullmann Tondel, com menção especial a "Mongrel"
PALMA DE CURTA-METRAGEM: "The Man Who Could Not Remain Silent", de Nebojsa Slijepcevic (Croácia), com menção especial para "Bad For a Moment"
DOCUMENTÁRIO: "Les Filles du Nil", de Nada Riyadh e Ayman El Amir, e "Ernest Cole, Lost And Found", de Raoul Peck
QUEER PALM (Láurea queer): "Three Kilometers To The End Of The World", de Emanuel Parvu
PRÊMIO DO JÚRI ECUMÊNICO: "The Seed Of The Sacred Fig"
PRÊMIO DA CRÍTICA (FIPRESCI): "The Seed Of The Sacred Fig"