Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O legado vivo de Peter Jackson

Peter Jackson nos sets de 'O Senhor dos Anéis': cineasta pode renovar sua investida no universo Tolkien | Foto: Divulgação

Novas viagens à Terra-Média estão por vir. Há um clima de batalha anunciado pelo que promete ser o maior êxito comercial do setor animado em 2024: "The Lord of the Rings: The War of the Rohirrim". Trata-se de um derivado da franquia "O Senhor de Anéis" (2001 - 2003), de Peter Jackson, recentemente revivida numa série da Amazon Prime, de J. A. Bayona. Mas o que se vê lembra mais Jackson do que Bayona. A direção é de Kenji Kamiyama.

Seu roteiro narra a história não contada por trás do conflito no Abismo de Helm, ambientado centenas de anos antes da fatídica guerra da Sociedade do Anel contra Sauron. O enredo desse épico em computação gráfica recria os feitos do guerreiro Helm Mão de Martelo, dublado por Bryan Cox. Já se fala em Oscar para o longa. Ao mesmo tempo, a Warner Bros. paquera Jackson pra reatar sua relação com a prosa de J. R. R. Tolkien (1892-1973) no que pode vir a ser um novo longa, uma nova franquia.

Sabe-se lá o que virá desse papo entre o cineasta e o estúdio, mas, de toda forma, no Brasil, o tesouro literário de Tolkien vai ganhar uma homenagem especial neste fim de semana. No sábado, às 23h59, o Estação NET exibe a animação "O Senhor dos Anéis", de 1978, dirigida por Ralph Bakshi, um dos papas das narrativas lisérgicas.

Em meio às comemorações dos 21 anos de "O Retorno do Rei" (2003), mais aclamado e mais oscarizado tomo da trilogia "O Senhor Dos Anéis", Jackson vem levantando um vasto material de imagens de arquivo sobre os bastidores das filmagens da adaptação da saga de J. R. R. Tolkien para um possível documentário. Há tempos, o cineasta anda dedicado mais a narrativas do real do que a ficção, vide o estrondoso sucesso de "Get Back", sobre os Beatles, na Disney .

A HBO Max anda exibindo um de seus melhores trabalhos nessa seara, a dos docs. revisionistas: "Eles Não Envelhecerão" (2018), sobre a I Guerra Mundial. Estima-se que seu tempo anda dedicado, parcialmente, a uma investigação documental sobre o quadrinista belga Hergé (1907-1983), de quem está adaptando uma aventura do jornalista Tintin. O novo longa ficcional de Jackson deve ser uma animação baseada no gibi "Os Prisioneiros do Sol".

Mas há quem diga que algo ligado a Tolkien saia das mãos Jackson antes disso, embora a Amazon Prime esteja investindo na segunda temporada de uma série baseada no universo da Terra-Média, o mundo capa & espada criado pelo escritor.

Hoje, na HBO Max, é possível conferir a versão integral de cada um dos capítulos da trilogia que Jackson rodou na Nova Zelândia, tendo Viggo Mortensen no papel do Rei Aragorn e Elijah Wood como Frodo. Já na Amazon Prime é possível acompanhar a trilogia "Hobbit", que ele dirigiu de 2012 a 2014.

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Para que serve Peter Jackson?

'The War of the Rohirrim' promete ser o maior êxito comercial do setor animado neste ano | Foto: Divulgação

Quando interpelado por resenhistas incrédulos frente à dimensão semiótica de espetáculos como os de Jackson, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard (1930-2022) costumava retrucar as demandas de seus interlocutores com uma pergunta: "Pra que serve o cinema?". Agora, nestes tempos de rachas políticos, com a opção de Peter J. de filmar seus novos projetos na surdina, sem alarde, a provocação do realizador de "Acossado" nos serve para uma reflexão sobre o pop: "Para que serve Peter Jackson?".

Há 22 anos, quando "O Senhor dos Anéis" iniciou sua travessia pelas telas, a resposta seria: "Para mostrar a dimensão política da fraternidade e congraçamento entre raças num mundo ainda ressaqueado pelo 11 de Setembro, engasgado com Bush". Foi o que disse Mortensen ao falar de Aragorn em uma de suas vindas ao Brasil, há 20 anos.

Em sua trilogia tolkieniana inicial, o realizador neozelandês fundou um novo formato de épico, que surpreendeu o cinema em dois quesitos. O primeiro quesito era sua engenharia de produção: Jackson rodou os três longas da franquia inspirada em Tolkien de uma só montada, em um período concentrado de um ano e meio de filmagens, por um orçamento estimado em US$ 94 milhões por episódio - um custo muito aquém das ambições estéticas do projeto. Nem Spielberg conseguia filmar dessa forma tão econômica. O segundo quesito de surpresa para os cinéfilos foi a metáfora política daquela trinca de filmes: num momento no qual Hollywood sentiu o desejo de flertar com tramas hiperrealistas, nas raias do documental, Jackson trouxe um manifesto fantástico em prol da metafísica, que serviu como um balão de oxigênio para o escapismo nas telas. Isso foi em 2001, 2002 e 2003. Muitos Oscars e muitos milhões nas bilheterias se passaram e uma nova década chegou. Depois outra. Mas Jackson, há muito carente de um sucesso, voltou ao universo que o consagrou como artesão comprovando sua verve autoral: em "O Hobbit" ele mostra que o companheirismo é o assunto-bússola de sua filmografia. Um terreno mágico foi cimentado em "Uma Jornada Inesperada" (2012). Um esforço de revisão formal da cartilha do capa-e-espada foi ensaiado em "A Desolação de Smaug". Mas, no tomo final, "A Batalha dos Cinco Exércitos", o planejamento de revisar a obra basilar de Tolkien, a partir do mito de formação da Terra-Média, converte-se em um filme de guerra magistral, à altura dos clássicos bélicos (de "Napoelón", de Abel Gance, a "Apocalypse Now", de Coppola). O formato de aventura de tintas infanto-juvenis dos longas anteriores dá lugar a uma estrutura narrativa mais áspera, de combates incessantes, quebrada apenas por um flerte com a essência da loucura ao mostrar o processo de contágio do anão-rei Thorin (Richard Armitage) pela Febre do Ouro. Nas tomadas de embate, regadas a violência banhada a aço, Jackson oferece ao australiano Andrew Lesnie a chance de construir o arranjo visual mais requintado das duas trilogias. Em suma, "A Batalha dos Cinco Exércitos" é a produção de tônus visual mais rijo entre todos os mergulhos de Jackson na literatura de Tolkien, mostrando o amadurecimento do realizador como um esteta plasticamente cheio de ambição e formalmente recheado de um pensamento sobre o valor união entre raças. Pra que serve um Peter Jackson? Serve para fazer o pop evoluir, seja na ficção ou em seus documentários. Que ele estreie algo novo longa. Seja onde for.