Por: Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Wim Wenders imparável

Pequenos conflitos tiram o protagonista de 'Dias Perfeitos' do prumo num longa rodado no Japão, em 17 dias | Foto: Divulgação

Enchendo sessões no Espaço Itaú, no Estação NET Gávea e no Estação NET Rio, em sessões variadas, "Dias Perfeitos" ("Perfect Days") já estreou no streaming, na MUBI, mas não arreda pé do circuito. Estreou em fevereiro e segue firme e forte como um dos títulos de maior busca pelo público carioca. Firma-se como sucesso e se candidata a cult.

Escrito em três semanas a partir da encomenda de um projeto documental sobre os banheiros públicos do Japão, "Dias Perfeitos" rompeu com a demanda da não ficção e nasceu filme em forma de drama, rodado em 17 dias.

Indicado ao Oscar, ele fatura firma. Sua bilheteria até agora beira uma cifra estimada em US$ 23 milhões, o que dá a ele impacto comercial. É um valor que reacende a estrela de boa sorte de seu realizador, o alemão Wim Wenders, no céu de Hollywood. Na década passada, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas hollywoodiana acolheu seu nome entre seus concorrentes pelos cults "Pina" (2011) e "O Sal da Terra" (2014), feito em duo com Juliano Ribeiro Salgado. Wenders agora volta com um filme cujo CEP é japonês, fincado a uma genealogia que o cineasta germânico de 78 anos aprendeu a conhecer a partir de sua cinefilia.

Radiante do primeiro ao último fotograma, "Dias Perfeitos" bate cabeça para o titã Yasujiro Ozu (1903-1963), diretor de joias como "Também Fomos Felizes" (1951), "Dia de Outono" (1960) e "A Rotina Tem Seu Encanto" (1962). Em sua formação de olhar, em paralelo a seu trabalho como fotógrafo, Wenders refestelou-se nos filmes dele. A fim de prestar tributo a ele, rodou "Tokyo-Ga", um poema documental de 1985, que é uma espécie de retrato fantasma a circundar as franjas delicadas de seus "Dias Perfeitos".

É um espectro que ronda o olhar de Wenders não como assombração, mas, sim, como se fosse um alumbramento, pois se dá uma espécie de simbiose entre dois filmes.

Cada um com seu modo de ser cinema, eles traduzem momentos distintos de Wenders pelo país que ajudou a formar seu imaginário. Com Ozu, ele aprendeu a cultuar a serenidade do dia a dia. É esse o princípio que rege o cotidiano de Hirayama, um zelador vivido nas raias do esplendor por Koji Yakusho. Não se trata de um princípio de inércia. É o princípio da contemplação. O que se dá em cena é um rito contemplativo dos momentos que abrem mão de viradas bruscas.

Ele vem da mesma paisagem humana dos filmes de Ozu. Filmas para os quais "Tokyo-Ga" olha de modo melancólico, como se algo defunto de outrora estivesse a agrilhoar seu entendimento do cinema naquilo que o semiólogo Roland Barthes chamava de "foi aí", ou seja, o particípio da construção artística, um resquício pretérito. Mas a mirada que guia "Dias Perfeitos" é o gerúndio, ou seja, um tempo de fricção.

Depois de uma longa fase documental, iniciada com o fenômeno "Buena Vista Social Club", em 1999, Wenders volta lépido às telas, fazendo ficção, agarrado à poesia numa vertente heraclitiana ciente de que não se pode, jamais, molhar-se nas mesmas águas ao revisitar um mesmo rio, pois tudo muda. Acompanhamos, em sua trama, a vida de Hirayama, um limpador de latrinas. O papel deu a Koji o prêmio de Melhor Ator de Cannes.

Seguimos essa figura a partir da informação sentimental de que ele ama o rock'n'roll raz, degustando o ritmo em fitas K-7. Gosta também de ler. Ponto. Sua vida é isso: é se abrir à melodia e às palavras. Situações sutis com colegas de trabalho e múltiplas reminiscências de seu passado vão cruzar seu caminho, mas não vão abalar a harmonia que ele criou. Harmonia que a edição de Toni Froschhammer absorve numa acolhedora montagem, capaz de valorizar a luz apolínea da fotografia de Franz Lustig. É um filme que nos leva ao deleite das simplicidades e dos abismos que nos aferram a incertezas. É um Wenders sublime.

 

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