Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O palhaço rouba a cena

'Joker: Folia à Deeux', com Lady Gaga e Joaquin Phoenix, mexe com o público meses antes de sua estreia | Foto: Divulgação

Nos últimos seis dias, desde que o trailer de "Coringa: Delírio a Dois" ("Joker: Folie è Deux") se aboletou no YouTube, ninguém fala mais dos 85 anos de Batman, pois o Palhaço do Crime roubou os holofotes de seu inimigo mascarado. Lady Gaga tem culpa nisso, pois ela assume o papel da Dra. Harley Quinzel, a Arlequina, outrora encarnada por Margot Robbie. Joaquin Phoenix ganhou o Oscar por sua atuação como o psicótico personagem lançado em 25 de abril de 1940 por Jerry Robinson, em triangulação com Bob Kane e Bill Finger.

O filme anterior desse assassino circense conquistou ainda o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 2019, de um júri presidido por Lucrecia Martel. Orçado em US$ 55 milhões, o longa-metragem - hoje na grade da plataforma MAX, ex-HBO - faturou US$ 1 bilhão e 78 milhões mundo adentro. Espera-se o mesmo dessa partr dois, agendada para estrear no dia 4 de outubro e centrada na paixão de Harley por Arthur Fleck (Phoenix) e seu desejo de enlouquecer tanto quanto ele.

A forte repercussão dos primeiros reclames publicitários da produção da Warner Bros., com direção de Todd Phillips, vem ampliando o público leitor das HQs do vilão, lançadas aqui pela Panini Comics. É o caso da saga "O Homem Que Parou De Rir", assinada pelos artistas gráficos Matthew Rosenberg e Carmine Di Giandomenico e centrada numa onda de caos nos EUA, com foco em Gotham City. Ampliou-se ainda a procura pela série de mangás do Coringa.

Expandiu-se ainda a corrida pelo filme de Phillps no MAX. Nele, dois longas-metragens estão em cartaz na Gotham City em que Arthur Fleck, um aspirante a Jerry Lewis de beira de esquina, transforma-se num estandarte do pavor vestido de palhaço: "Um tiro na noite" ("Blow out"), de Brian De Palma, e "As duas faces de Zorro" ("Zorro, the gay blade"), com o Didi Mocó George Hamilton. São indícios de que estamos no ano de 1981, momento histórico no qual o filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007) passa o pop (sobretudo o dos EUA) em revista para entender o que seus colegas Arnold Toynbee e Jean-François Lyotard chamaram de Modernidade Tardia, ou, para os íntimos, pós-modernidade, um animal de plumas, com hidrofobia terminal. Esse tal de pós-modernidade é a gênese do Coringa que Joaquin Phoenix divinamente constrói... algo bem diferente do retrato do vilão de HQs composto por Jerry Robinson em 1940... e bem distante do retrato camp, afetadíssimo, dele feito pelo ator Cesar Romero no seriado do Homem-Morcego para a TV, nos anos 1960. Ali tínhamos o Moderno... algo calçado por um tratado, um paradigma, um manifesto... no caso, a noção de que o Bem vence o Mal e espanta o temporal. No "Coringa" que comemora cinco anos de seu lançamento não há embasamentos éticos metidos a estéticos. Há apenas sinais de desaparição, da atomização dos cintos de segurança ideológicos que mantinham as aparências de controle e de harmonia entre as civilizações. Agora, isso acabou, pela mesma lógica de que falava Baudrillard, nos anos 1980: "Deus não vai sumir pela escassez e sim pelo excesso, pela proliferação desmedida, pela reprodutibilidade". A profecia do bruxo filósofo de "A transparência do Mal" deu em "Joker", de Todd Phillips.

Na era Biden, o Deus da caridade, da inclusão, do respeito sumiu pelo uso vão de seu santo nome em programas de TV, de streaming, de terrorismo midiático. Deus aqui deve ser encarado como um sinônimo para "valores" de dignidade, do Humano. Valores que Fleck vai perdendo a cada cena da produção Warner Bros.

Há um lastro de glória (mas também de precipício) no Coringa dele. Dezesseis anos depois de Christopher Nolan ter usado os quadrinhos para produzir a mais sombria alegoria sobre a era Bush e o desamparo moral do século XXI, em "Batman - O Cavaleiro das Trevas" (2008), o Yorick de Gotham City volta a aprontar das suas e nos dá o que pode ser definido como um estandarte do descontrole político, coroado com o Leão de Veneza. A vitória de "Coringa" no gosto e nas reflexões do júri chefiado por Lucrecia Martel, diretora de "Zama" (2017) e de "O Pântano" (2001), coroa um tipo de cinema pautado por uma artesania no limite da excelência. E coroa também o dito "cinema de gênero", instância de diálogo direto com as plateias que troca o conceito pelo pragmatismo. Venceu um filão: o filme de HQs. O gênero hoje anda em baixa, mas o Coringa pode surrupiar as atenções de seus concorrentes e fazer dele uma febre de novo.

 

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