Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Cerrar Los Ojos', um filme para escancararmentes

José Coronado é o ator que some nas filmagens de 'Cerrar los Ojos' | Foto: Divulgação

 

Ao longo de 50 anos de uma das carreiras mais cultuadas de todo o cinema europeu, o espanhol Victor Erice dirigiu apenas quatro longas-metragens: o seminal "O Espírito da Colmeia" (1973); "O Sul" (1983); "O Sol do Marmelo" (1992); e, no ano passado, "Cerrar Los Ojos". O último da lista virou um aríete que vem lhe abrindo caminhos - e lhe rendendo uma série de láureas - desde sua projeção na mostra Première de Cannes, em maio passado.

Na ocasião, o diretor de 83 anos irritou-se por ter sido escalado para uma mostra que não lhe dava acesso à competição pela Palma de Ouro. Mesmo assim, firmou-se como objeto de culto no mundo todo. Entrou na lista dos Dez Mais da revista "Cahiers du Cinéma", Bíblia da cinefilia desde 1951, e acaba de ser contemplado com o prêmio Sophia, votado pela crítica portuguesa.

Muito antes de Pedro Almodóvar aparecer, ali pelo início da deácada de 1970, num momento de jugo franquista, Carlos Saura (1932-2023) era "O" motor de resistência para o cinema autoral ibérico até a aparição de "O Espírito da Colmeia" (Concha de Ouro de 1973 no Festival de San Sebastián).

Nele, Erice ritualizou as inquietações da educação sentimental infantil de uma forma a um só tempo lúdica e política. Deu à sua Espanha natal uma obra-prima e reciclou o conceito de lirismo de uma Europa que se reinventava em múltiplas latitudes ainda sob o eco das agitações de 1968. Levou dez anos para fazer "O Sul" e mais nove até chegar ao belíssimo "O Sol do Marmelo" (1992), que ganhou o Prémio do Júri de Cannes.

Desde então, restringiu-se aos curtas-metragens e ao ofício de ministrar palestras. Foi assim até "Cerrar Los Ojos", um filme que soa como um testamento, um adeus e um "para sempre". Nas primeiras imagens, vemos um embate entre um ancião rico, que deseja rever sua filha, e um homem sem ocupações que é transformado em detetive. Não é da vontade dele virar um caçador de paradeiros, mas será seu destino, a fim de encontrar uma jovem chinesa que há de chamar o ancião de pai. Mas esse quiproquó não é o tema centrar de "Cerrar Los Ojos" e, sim, um filme dentro do filme. A partir dele, Erice engatilha uma reflexão sobre a finitude.

Talvez seja o mais sereno estudo sobre o fim desde "Ran" (1985). Erice não parece temer a Morte. Parece espera-la, com calma. Já no título, "fechar os olhos", o realizador transforma em verbo (de ação) uma perspectiva de desolamento e uma (triste) impressão em relação ao futuro do cinema. É hora de descer a persiana do olhar, uma vez que o audiovisual parece inundado de algoritmos e de simulacros. Contudo, o gesto de "encerrar as atividades", traduzido por palavras na epiderme da narrativa fílmica de um já octogenário Erice parece mais escancarar possibilidades de futuro, num paradoxo.

Soa como um "sair de cena" para um cineasta que filmou pouco. Mas, para sair de cena, ele nos dá um exercício de contemplação do Tempo, e da própria arte em que militou, que bate nas telas com dimensão de espetáculo. Sua montagem mesmerizante é capaz de descascar camadas de sentido das situações mais corriqueiras. A câmara do diretor de fotografia Valentín Alvarez flana por coloquialidades, trivialidades, como a pintura de uma parede, numa tarde de sol. Mas o gesto do pincel sob um muro, a espalhar tinta, ganha uma tessitura plástica incomum quando encarada por um Erice sedento por degustar os sentidos que as cores podem ter no écran. O mesmo se passa com as palavras, quando ouvimos: "Desaparecer… A ideia de mudar de identidade é refazer a vida em outro sítio".

É esse o estopim do enredo de Erice, ao seguir os passos de Miguel Garay (Manolo Solo, em atuação devastadora), um ex-cineasta. Ele virou escritor e hoje vive como tradutor, com a dor de saber que seu segundo e último filme foi interrompido há 22 anos. A interrupção se deu quando o astro e melhor amigo, Julio Arenas (Jose Coronado), desapareceu sem deixar vestígios. Duas décadas depois, as TVs falam desse desaparecimento, num programa de cunho policialesco. Garay se compadece não do filme inacabado, mas daquilo que deixou de ser… ou seja… de uma amizade que acabou sem um adeus, ou, pior do que isso, sem um abraço. Em busca desse abraço partido, o personagem de Solo vai enveredar por uma espiral de sentimentos - alguns duros demais. Destaca-se no elenco o trabalho de Mario Pardo como Max, um projecionista e colecionador de películas e pôsteres.

 

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