Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA FILME - FERNANDA YOUNG - FOGE-ME AO CONTROLE: Jorro de ousadias num ensaio de saudades

Narrativa de Susanna Lira usa colagens para mapear as ideias de Fernanda Young | Foto: Divulgação

 

Turbilhão de colagens - seja de desenhos, fotos, trechos de performances, entrevistas, séries de TV -, "Fernanda Young - Foge-me Ao Controle" periga ter se tornado o filme mais amado do É Tudo Verdade 2024. Foi abraçado numa unanimidade torta, sintonizada com o espírito cri-cri da romancista, poeta e apresentadora que documenta.

Há quem ame o corta-e-cola da narrativa (mais ousada, até hoje) da diretora Susanna Lira, mas se encrespe com a verborragia filosófica de seu objeto de estudo - uma autora que fazia do verbo "irritar" seu aríete.

Fernanda morreu em 2019, aos 49 anos, em decorrência de uma crise de asma. Ela dizia que "reclamação é uma forma de otimismo". Era sua forma de se apresentar. Para alguns, isso é indigesto. Mas tem quem enxergue fofura numa série de depoimentos da própria personagem (pois tudo o que se ouve, fora uma ou outra pergunta de Marília Gabriela em arquivos, é em primeira pessoa) sobre vida familiar e alianças. A mais tocante delas: "Meu marido tem a função de organizar minhas alterações de humor", diz, referindo-se ao companheiro, o publicitário e roteirista Alexandre Machado. Ou seja, é um filme de saldos receptivos antitéticos, mas, é um filme adorável.

E, num exercício de genealogia, ele evoca o trabalho da americana Shirley Clarke (1919-1997), a cineasta com quem Susanna mais parece dialogar, no Tempo, na História.

Basta uma frase colhida de uma sabatina da realizadora de "In Paris Parks" (1954) para que se entenda sua conexão com Fernanda Young: "Nunca tive certeza sobre o mundo a que eu pertenço". Shirley dirigiu 32 filmes entre 1952 ("Jelly Roll Morton") e 1985 ("Ornette: Made In America"), consagrando-se como um dos pilares do documentário estadunidense. Fez o que se chama de avant-garde, em forma de curtas-metragens, e, como Susanna, galgou a excelência no terreno do .doc biográfico, com "Robert Frost: A Lover's Quarrel With The Wolrd" (1963) e o magistral "Portrait of Jason" (1967).

É o mesmo terreno no qual Susanna, filme a filme, série a série, afirma-se como uma das documentaristas mais indomáveis de nosso país hoje, vide "Nada Sobre Meu Pai" (2023) e "Casão, Num Jogo Sem Regras" (2022).

Seu destaque nos holofotes destinados ao É Tudo Verdade revela uma conexão a mais com a estética perseguida por titãs como Shirley Clarke. A máxima da cineasta americana era: "Todo processo de trabalho que eu desenvolvo é baseado no fluxo do movimento e no ritmo da montagem, numa dualidade de fantasia e realidade que convivem juntas, em toda imagem filmada".

Essa tensão está em "Fernanda Young - Forge-me Ao Controle", levando-o a um lugar de ensaio, a um jorro tão incontinente quanto o da cabeça da mulher sobre quem se debruça, fugindo da estrutura enciclopédica do cinema talking head, de depoimentos, de gráficos, de ilustrações. Não se ilustra nada do que Fernanda fala, sequer na leitura de fragmentos de sua literatura, lidos por Maria Ribeiro (que a interpretou no teatro, online, na pandemia). Em vez de "fotos-legendas" autoexplicativas e reiterativas, o que se vê na tela é um oceano de imagens da Era Muda do cinema, sempre com mulheres em ação, de modo a delinear a força feminina com a qual Fernanda se afinava.

Da mesma forma como Shirley Clarke fazia, existem momentos de delírio e de digressão (belíssimos) em "Fernanda Young - Foge-me Ao Controle", tal qual existem momentos factuais. Neles, somos apresentados, pela própria FY, a seus livros (como "A Mão Esquerda de Vênus") e a seu olhar sobre o ofício da escrita de roteiro no Brasil. ]

A montagem de Ítalo Rocha (com a assistência de Rê Ferreira e Mateus Teixeira) dá equilíbrio a essa dinâmica (realidade em fricção com a imaginação) que Shirley chamava de gangorra. Sequências de "Os Normais", do subestimado "Os Aspones", de "Macho Man" e de "Shippados" nos engasgam de saudade de sua obra. Mas Susana não detalha esses trechos, gastando energia em explicar como esses exercícios televisivos retratam a evolução de Fernanda, em seu processo de trabalho com o diálogo, para atrizes e atores do porte de Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimarães, Selton Mello, Tatá Werneck e Andrea Beltrão.

Susanna jamais fala por Fernanda ou tenta confina-la em verbetes de dicionarização. FY não caberia em um. É na liberdade plena, galvanizada pela bela trilha de Flavia Tygel, que se dá uma autopsia em corpo vivo de um modo de ser e de estar radical.

O máximo de vetorização que Susanna impõe ao filme - e com sutileza de artesã - é a discussão sobre a não aceitação (em vida) de Fernanda como a grande escritora que era, vide o devastador "Efeito Urano". A própria FY fala do preconceito que sua prosa sofria, peitando quem a esnobava: "Não reverencio os coronéis da Cultura". O filme belíssimo que ganha, hábil no esgarçamento de fronteiras biográficos, escuta suas críticas e embala suas autocríticas, sem concessões.

Nesta sexta (12), o É Tudo Verdade exibe mais una sessão de "Fernanda Young - Foge-me Ao Controle". Será às 17h30, no Estação Net Rio.

 

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