Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

A iguaria que dividiu a França

Juliette Binoche contracena com Benoît Magimel em 'O Sabor da Vida' | Foto: Stéphanie Branchu/Divulgação

Desde que saiu do Festival de Cannes de 2023 coroado com o prêmio de Melhor Direção, o vietnamita Tran Anh Hùng tem pago uma conta que não é dele em função de um quiproquó político da Françaque respingou na iguaria "O Sabor da Vida". O filme entra em cartaz no Brasil neste fim de semana - e ganha uma edição em livro da Nova Fronteira - depois de ser visto por cerca de 220 mil pagantes em Paris, Nice, Marselha e arredores.

Faturou bem menos do que poderia por uma confusão cometida pelas autoridades culturais francesas. No fim da maratona cannoise, pouco depois de Hùng ter sido premiado, a diretora Justine Triet foi anunciada como a ganhadora da Palma de Ouro, com "Anatomia de uma Queda". Ao subir ao palco do Palais des Festivals, ela vociferou críticas ao sistema de governo de sua pátria, num ataque frontal às estruturas de fomento à arte. Naquele momento, ganhou inimizades.

Tanto ganhou que foi preterida na hora de aquela nação selecionar quem seria seu representante na briga por uma vaga ao Oscar. A fim de escolher um representante à altura, o colegiado por trás da missão de selecionar um emissário francófono potente para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood optou pela narrativa de Hùng em parte por conta de seu elenco central: o ex-casal Juliette Binoche e Benoît Magimel. Mas seus encantos vão bem além de sua trupe.

"Quis fazer uma história de amor que celebrasse à arte de cozinhar", disse o cineasta, que se notabilizou nos anos 1990, com "O Cheiro da Papaia Verde" (1993).

Adaptação do romance "La Vie et la Passion de Dodin-Bouffant, gourmet"" (1924), de Marcel Rouff (1877-1936), "O Sabor da Vida" é o o primeiro filme do Hùng depois de um hiato de sete anos. Antes ele fez "Éternité", de 2016, e sumiu, residindo em Paris, estudando e colhendo dados para novos (e pessoais) projetos.

Mas seu regresso foi celebrado em Cannes, onde a crítica se encantou com a exuberante abordagem do universo da culinária da França do século XIX. "O cinema que eu almejo fazer não tem que ilustrar marcas de roteiro e, sim, deixar que a linguagem seja livre para capturar a plateia e comovê-la", disse Hùng, sem se pronunciar sobre a confusão com o longa de Justine, laureado com o Oscar de Melhor Roteiro Original no dia 10 de março.

Ambientada em 1885, "La Passion de Dodin Bouffant" (nome de "O Sabor da Vida" na França) acompanha os rituais culinários diários feitos pela chef Eugenie, vivida por Juliette Binoche, em sua relação da mais acalorada e cúmplice paixão pelo gourmet Dodin, vivido por um inspirado Benoît Magimel.

Amigos da alta sociedade vão a casa dele se deliciar dos pratos preparados por Eugenie. É esperada até a vinda de um nobre. Mas ela começa a dar sinais de estar gravemente doente. É quando Dodin decide inverter os papéis e cozinhar para ela, a fim de expressar todo o seu afeto.

"Tenho muitas influências do cinema francês em minha vida, mas não quis que elas tomassem as rédeas aqui", diz Hùng. "'O Sabor da Vida' é, sim, um filme mais francês do que do Vietnã, mas ele busca ter uma voz própria, autônoma. Há, contudo, um diretor que sempre levo comigo: Godard. Cada filme dele tinha um frescor. Gosto de sua luz".

Hino ao amor e beleza

Durante a coletiva de Cannes, Juliette define o filme como "um hino ao amor e à beleza". "É um filme feminista. Hùng quis retratar a mulher com o status de liberdade, sem opressão. Ela é um signo de independência", defende a atriz. "Na vida a gente tem que aprender com os próprios erros, encontrar nosso próprio caminho e buscar onde temos serenidade. O cinema conseguiu me mostrar isso tudo. Eu sigo filmando para descobrir o que não sei, para ser surpreendida", acrescenta a diva.

Magimel elogiou a concisão do diretor. "Palavras não são necessárias para expressar o que buscamos. A palavra de que precisamos é Dodin buscar o nome de Eugenie, sempre curioso por ela", disse.

Elogiado pela força de sua fotografia saturada, assinada por Jonathan Ricquebourg, "La Passion de Dodin Bouffant" impôs a Hùng um desafio sinestésico. "De que maneira é possível reproduzir em imagens a sensação de provar de um prato, gozar com o sabor da iguaria e desfrutar da degustação?", disse o cineasta. "O caminho que tentei foi evitar impor ao espectador uma visão específica sobre cada prato, cada alimento. O tempero para isso foi o som, o som de uma cozinha viva, com o tilintar dos talheres".

 

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