Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Na baía de Murilo Salles

Pescadores ao amanhecer no meio da Baía de Guanabara, sob as lentes do diretor Murilo Salles | Foto: Divulgação

Cerca de três anos se passaram desde que Murilo Salles conquistou o troféu Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio por "Uma Baía", mas só agora o longa-metragem tem vaga em circuito. Estreia no dia 18. Raras vezes, no processo de enamoramento do cinema brasileiro com a paisagem carioca - a se contar da gênese de nosso audiovisual, com os irmãos Segreto, em 1898 -, a Baía da Guanabara foi filmada de maneira tão potente. A partir de sua relação com as artes visuais, o realizador de "Como Nascem Os Anjos" (1996) e "Nome Próprio" (2008) tece oito fábulas que fazem pulsar o que dá sentido às jornadas pela sobrevivência de cada um de seus personagens.

São investigações sobre os conflitos entre vida e história, num contraste de beleza natural com o espanto dos personagens no entorno da Baía de Guanabara. Constam do "elenco" dessa Comédia Humana um catador de caranguejos do Pontal do Ipiranga; um pescador de mexilhões de Niterói; um operário da Maré; a funcionária de um entreposto pesqueiro; um artesão que cria de barcos; um barbeiro evangélico; um charreteiro de Paquetá e funcionários de um cais um cavalo de charrete em Paquetá.

"O filme 'Uma Baía' se tornou muito especial na minha vida, porque ele foi nascendo assim, sem muita demanda", diz Murilo. "Tive a sorte de ter o melhor produtor de personagens que tive em toda a vida, Daniel Rolin, com que passei um tempo enorme conhecendo um monte de pessoas que habitavam e usufruíam da Baía. Fomos a muitas ilhas; vasculhamos manguezais; procuramos trabalhadores na indústria naval; corremos atrás de pessoas que trabalhavam no Arsenal da Marinha aqui no Rio; vasculhamos as comunidades ribeirinhas. Enfim, foi um tempo incrivelmente tenso e prazeroso. É assim que fazemos filme, é nesse trabalho que ele nasce. E se formos sortudos encontraremos pessoas que vão nos ensinar o que não sabemos, embora achemos que sim".

Ao mirar o dia a dia de cada personagem escolhido, sem forçar interações, Murilo - filtrando a realidade a partir da fotografia de Leonardo Bittencourt e Fabrício Motta - compõe o caleidoscópio de um RJ que nos cerca, mas não é mais visto. Um RJ onde heranças indígenas do passado norteia práticas de trabalho e de socialização. "Uma Baía" conquistou ainda o Redentor de Melhor Montagem.

"Eu faço documentários para ficcionar", diz Murilo. "Meu pai era jornalista. Ele trabalhava com informação escrita. Eu sou cineasta. Trabalho com a manipulação dos específicos da minha linguagem. Confesso que a questão de método e a forma de filmar se embaralham na minha cabeça. Antes sofria com isso, hoje acho bom. Não tenho fixado nem método nem forma. Agora mesmo estou trabalhando na montagem de meu próximo filme ficção com Eva Randolph, parceira e excepcional. Ela me perguntou sobre possível referência que teria na cabeça ao filmar uma cena estranha à minha filmografia, que ela conhece bem. Disse que não tinha. Foi a imbricação de várias origens, dificuldades, tempo de filmagem, humor meu e da equipe, e estado de ânimo dos atores. Faço filmes e aprendendo com eles. E tenho dificuldade de dizer, o que dizia antes, que fazia ficção querendo documentar. Sim, o aspecto documentarista fala alto em minha alma. Mas como? Sou um fotógrafo, sempre construí imagens. Na ficção um pouco mais, pois tem a questão do plano".

Conversar com Murilo é ouvir um artesão da luz. Ele ganhou o Leopardo de Bronze de Locarno já em sua estreia na direção de longas de ficção (em 1984, por "Nunca Fomos Tão Felizes"), depois de uma aclamada estreada como fotógrafo. Sua mais recente ficção, o thriller político "Os Fins e os Meios", deixou a Première Brasil, em 2014, com o prêmio de melhor roteiro. Segundo ele, na tela, "o plano é uma ferramenta totalmente cinematográfica".

"Adoro cineastas fazedores de plano. Mas isso tem o limite da questão que é meio documental (para mim) que é o ator", explica. "Ator não é específico do cinema. Há pessoas que nunca pisaram num palco nem muito menos num set e são maravilhosos atores! Ator é a grande questão de como construir uma ficção cinematográfica. Ele constrói o personagem. Ele incorpora. Existe uma conexão de certa proximidade com o não controle do documentário. Não tem nenhum controle. No documentário até tenho um método bem claro. Mas na ficção temos que trabalhar para naturalizar uma condição barra pesada que é estarmos diante de situações difíceis, muito diversas de nosso lugar de fala. Então, aí eu viro documentarista. Aí gravo o máximo que consigo, até me tornar insuportável ao meu 'personagem', até ele passar a me odiar. O material começa a ficar interessante".

 

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