Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Cinema perto do coração selvagem

Imagem de Clarice em 'A Descoberta do Mundo', na Amazon Prime | Foto: Divulgação

Devoradas por leitores de vários cantos do mundo, em traduções da língua portuguesa, as páginas de Clarice Lispector (1920-1977) instigam (e inspiram) o cinema brasileiro desde a morte da escritora, que ganha as telas nacionais, a partir desta quinta-feira, com a estreia do aguardado "A Paixão Segundo GH".

É o filme de regresso do mais festejado diretor de TV do país, Luiz Fernando Carvalho, à tela grande, 23 anos depois de "Lavoura Arcaica" (2001), seu único longa-metragem até agora. Seu retorno comove plateias, sobretudo pelo esplendoroso desempenho de Maria Fernanda Cândido no papel de uma mulher de classe média que entra num turbilhão existencialista ao ver os restos de uma barata.

Haverá uma sessão especial do filme no Estação NET Gávea nesta quinta, às 19h30, com debate ao fim da sessão, mediado pela jornalista e apresentadora do Canal Brasil Simone Zuccolotto, com o realizador e a roteirista Melina Dalboni. Antes, às 18h, ela vai lançar o livro "Diário de um Filme" (Rocco), sobre os bastidores do processo. Será um evento cinéfilo, mas, também, literário, em celebração do legado de Clarice, que movimenta o audiovisual em outras latitudes.

Neste momento, a cineasta Nicole Algranti, sobrinha-neta da escritora, respeitada em especial por suas experiências documentais, assina a direção artística de uma produção com elenco estelar, atualmente em filmagem, que dá vida a diferentes textos de Clarice. Eunice Gutman filma "Mal-Estar De Um Anjo"; Taciana Oliveira encampa "Amor"; Maria Luiza Aboim adapta "Feliz Aniversário"; e Bárbara Kahane se ocupa de "Preciosidade". A própria Nicole dirige um segmento, baseado em "A Bela e a Fera ou A Ferida Grande Demais".

Há 21 anos, Nicole concorreu no Festival de Brasília com um curta-metragem baseado na obra de sua tia-avó: "O Ovo", com Louise Cardoso, Carla Camurati e Chico Diaz, com narração feita por Maria Bethânia. Ela fez ainda com Louise "Clarice Lispector - De Corpo Inteiro", que pode ser visto em seu canal do YouTube: Tabocas Filmes.

Laureado com uma menção honrosa e o prêmio de Melhor atriz no 22º BAFICI, festival de Buenos Aires, "O Livro dos Prazeres", de Marcela Lordy (diretora de "Aluga-se"), é outra das recentes incursões da classe cinematográfica ao planeta Lispector. Pode ser visto hoje no Globoplay. Nele, a diretora promove uma sofisticada operação de "deslizamento" em seu corpo a corpo com a prosa homônima de Clarice. É um curso de roteiro de 1h40, na batida de um intensivão de escrita.

Chega a ser uma heresia aplicar o "redutor" conceito de "adaptação" para definir o quão sofisticado é o diálogo estabelecido entre o script de Josefina Trotta e da própria Lordy e o livro "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", lançado por Clarice em 1969. Em ambos, o romance e o filme, conhecemos Loreley - professora chamada entre seus pares só de Lóri - pelo vácuo em seu peito, que a leva a se desgarrar de qualquer possível relação amorosa duradoura. Nós emotivos assustam a personagem esculpida com delicadeza por Simone Spoladore. O segundo personagem de peso da trama, o filósofo Ulisses, é confiado a Javier Drolas, astro de "Medianeras" (2011).

Quem assina a Amazon Prime tem a chance de poder se deliciar com "Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo", no qual Taciana Oliveira investiga a autora de "A Maçã no Escuro" sob os mais variados prismas. É uma abordagem documental de timbres poéticos.

Vale lembrar que a versão da diretora Suzana Amaral (1932-2020) para "A Hora da Estrela", lançado em 1985 e aclamado no exterior (sobretudo pelo desempenho de Marcélia Cartaxo), foi recentemente remasterizada pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro.

 

Atomização da apatia burguesa

Nas raias da perfeição, o mergulho de Luiz Fernando Carvalho no livro "A Paixão Segundo GH" gera um dos movimentos mais politizados de sua obra autoral ao atomizar a ideia de burguesia não por uma refutação dela mas por um confronto frontal com seu vazio mais abissal.

Aromas de Luchino Visconti e seu "O Leopardo" (1963) perfumam a lavação de roupa social proposta pelo diretor, de modo a devassar a calmaria daqueles que têm muito - na aparência - mas se posicionam com incerteza diante da essência... a essência do humano.

Para representar vários degraus de uma sociedade de classes sociais afastadas pelo jugo do capitalismo, Luiz Fernando dirige Maria Fernanda Cândido num jogral corporal inusitado para as formas de se atuar no país, a partir do qual ela constrói distintas personas, sendo muitas mulheres numa só, como um coral das forças femininas. O resultado: um espetáculo fílmico indomável. (R.F.)

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