Ecos das Gerais vão ecoar pelo circuito nacional com a estreia do documentário "Nada Será Como Antes". Um dos filmes mais tocantes de Ana Rieper (de "Vou Rifar Meu Copração") amplia o terreno do gênero musical biográfico na produção documental brasileira. Fotografado por Jacques Cheuiche, o longa cartografa os passos históricos do álbum "Clube da Esquina" na MPB. O LP é considerado por muitos críticos musicais como um dos melhores de todos os tempos. Milton Nascimento, Lô Borges - então com 16 anos - e músicos do porte de Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Beto Guedes, Robertinho Silva e Wagner Tiso criaram ali uma sonoridade única, que ajudou a revolucionar a música brasileira e mundial.
A partir de "Nada Será como Antes", que abriu o Fest Aruanda, na Paraíba, em dezembro, Ana mergulha nas experiências sonoras deste time de criadores excepcionais. A ideia é entender como referências musicais diversas refletiram em cada um deles e na obra atemporal que criaram. Na entrevista a seguir, ela explica seu processo de criação.
O que o Clube da Esquina trouxe de mais encantador e de mais político para a sua geração?
Ana Rieper: É inevitável, aliás, é desejável falar sobre política em relação ao Clube da Esquina. Foi um movimento musical que nasceu, nas palavras do Márcio Borges, do cinema e da política. É daí que vem essa música. A filmagem no Colégio Estadual Central, em Belo Horizonte, onde essa turma toda estudou... onde a presidente Dilma Roussef estudou, nessa mesma época... foi uma das formas que o filme encontra de tocar nesse tema tão próprio daquele movimento, daquela música. Aquele foi um espaço de criação da identidade daqueles meninos. Quem não era aluno, como Fernando Brant e Milton Nascimento, frequentava aquele espaço. E se tornaram adultos no exercício da luta política. Vale lembrar que era a década de 1970, fase mais dura da ditadura civil militar no Brasil. Foi muito bonita essa filmagem, porque ao mesmo tempo em que esses veteranos se encontravam lá para a nossa filmagem, do lado de fora do auditório onde filmamos, a molecada jovem seguia esse mesmo movimento. Um espaço muito interessante.
De que maneira eles transcendem o cancioneiro romântico retratado por você em "Vou Rifar Meu Coração"?
É uma música que não envelhece. Eu vejo os jovens aqui de casa, com 16, 17, 18 anos, super fãs, tocando Clube da Esquina em suas bandas, ouvindo esse som e se identificando muito com esse mundo musical. É uma sonoridade e uma poesia que são atemporais e que têm um diálogo muito forte com a juventude. Vejo uma semelhança muito grande com os Beatles, não à toa uma das maiores referências da "ala jovem" do Clube da Esquina. O Clube da Esquina traz um tempo-espaço da música brasileira muito diferente daquele que constitui a música romântica popular retratada no "Vou Rifar meu Coração". Dialoga com um público diferente, uma juventude politizada e ligada às artes. São poéticas diferentes. Uma é mais direta, mais concreta e mais abrangente em termos de público - a dos românticos - e outra, a do Clube da Esquina - com uma poesia muito complexa -, é uma música que vem de referências muito diversas, como o rock, o jazz, a música regional mineira, o choro, a música cigana do leste europeu, o progressivo, e... por aí vai.
O que o cinema musical documental oferece para você como campo de trabalho e de pesquisa?
Cada filme sobre música que faço é um mergulho em determinado aspecto do mundo e isso me encanta. Um filme sobre o Clube da Esquina poderia ser mil filmes diferentes, assim com um filme sobre Clementina de Jesus ou sobre a música popular romântica podem ser muita coisa também. São universos musicais e personagens muito vastos, densos, complexos. Pensar qual é o tema de que cada filme trata é um desafio muito interessante pra mim. Gosto de fazer documentários por ser um filão que exige uma relação forte com o mundo. Os filmes são um resultado da relação de cada equipe e filme com aquele mundo, ou com aquele aspecto do mundo que o filme toca. No caso do "Vou Rifar meu Coração", há o amor romântico, seus encantos e mazelas; no "Clementina", há a força da existência e da cultura negra no Rio de Janeiro, e uma vivência de mulher com a qual me identifico muito.
O que vem pela frente de seus projetos?
Estou finalizando um longa documental sobre a família brasileira. O filme se chama "Paraíso" e aborda, a partir de uma narrativa muito musical, a herança colonial na nossa vida em família. A ideia de família, no filme, é olhada tanto a partir de uma perspectiva mais íntima, doméstica, cotidiana, quanto de uma construção institucional, ligada ao poder público, às leis, à religião. Ligada a uma moral social muito marcada pelo nosso passado de colônia escravocrata baseada no latifúndio. O documentário se constitui por filmagens com seis núcleos de personagens e material de arquivo muito diverso, como telejornais, comerciais, discursos políticos, filmes domésticos. Estou ainda iniciando um longa sobre sexualidade a partir do ponto de vista do funk, chamado "Massa Funkeira".