Por: Affonso Nunes

Uma esquina de sonhos atemporais

Chega aos cinemas na quinta-feira (28) o documentário 'Nada Será Como Antes', um megulho em torno da criação de 'Clube da Esquina', um dos melhores álbuns da MPB | Foto: Divulgação

Bendito dia em que dona Maricota mandou o filho Lô, de dez anos, comprar pão para o lanche da tarde. Atraído por um som de voz e violão que vinha da escadaria, o garoto trocou dispensou o elevador e começou a descer 17 andares. Lá pelo quarto deparou-se com um rapaz preto que cantava absurdamente bem. Era Milton Nascimento, ou o Bituca, para os colegas do Edifício Levy, do bairro de Santa Teresa, da eclética cena musical de Belo Horizonte nos anos 1960.

O divertido depoimento de Lô Borges é uma das cenas do cativante documentário "Nada Será Como Antes", de Ana Rieper, que chega aos cinemas no próximo dia 28. Lançado no Festival do Rio de 2023, o longa explora a musicalidade do talentoso grupo por trás do álbum "Clube da Esquina", um dos melhores da MPB de todos os tempos!

Com imagens de arquivo primorosa, na tela emergem depoimentos de Milton Nascimento, dos irmãos Lô e Márcio Borges, de Beto Guedes, Toninho Horta, Wagner Tiso, entre outros, para apresentar a plêiade de referências estético-político-musicais que moldaram um dos movimentos mais inventivos do nosso cancioneiro, berço de acordes e versos atemporais, tendo a amizade e afeto como combustível, e que bebeu de fontes como o jazz, o rock dos Beatles sem abrir mão da mineiridade. É de se lamentar que o poeta Fernando Brant (1946-2015) não tenha vivido para deixar seu testemunho sobre este fascinante legado.

A história por trás de cada canção deste álbum perfeito reforça a genialidade dessa turma que provou, com propriedade, que nada será como antes.

 

Ana Rieper: 'Um filme sobre o Clube da Esquina poderia ser mil filmes diferentes'

| Foto: Divulgação

Ecos das Gerais vão ecoar pelo circuito nacional com a estreia do documentário "Nada Será Como Antes". Um dos filmes mais tocantes de Ana Rieper (de "Vou Rifar Meu Copração") amplia o terreno do gênero musical biográfico na produção documental brasileira. Fotografado por Jacques Cheuiche, o longa cartografa os passos históricos do álbum "Clube da Esquina" na MPB. O LP é considerado por muitos críticos musicais como um dos melhores de todos os tempos. Milton Nascimento, Lô Borges - então com 16 anos - e músicos do porte de Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Beto Guedes, Robertinho Silva e Wagner Tiso criaram ali uma sonoridade única, que ajudou a revolucionar a música brasileira e mundial.

A partir de "Nada Será como Antes", que abriu o Fest Aruanda, na Paraíba, em dezembro, Ana mergulha nas experiências sonoras deste time de criadores excepcionais. A ideia é entender como referências musicais diversas refletiram em cada um deles e na obra atemporal que criaram. Na entrevista a seguir, ela explica seu processo de criação.

O que o Clube da Esquina trouxe de mais encantador e de mais político para a sua geração?

Ana Rieper: É inevitável, aliás, é desejável falar sobre política em relação ao Clube da Esquina. Foi um movimento musical que nasceu, nas palavras do Márcio Borges, do cinema e da política. É daí que vem essa música. A filmagem no Colégio Estadual Central, em Belo Horizonte, onde essa turma toda estudou... onde a presidente Dilma Roussef estudou, nessa mesma época... foi uma das formas que o filme encontra de tocar nesse tema tão próprio daquele movimento, daquela música. Aquele foi um espaço de criação da identidade daqueles meninos. Quem não era aluno, como Fernando Brant e Milton Nascimento, frequentava aquele espaço. E se tornaram adultos no exercício da luta política. Vale lembrar que era a década de 1970, fase mais dura da ditadura civil militar no Brasil. Foi muito bonita essa filmagem, porque ao mesmo tempo em que esses veteranos se encontravam lá para a nossa filmagem, do lado de fora do auditório onde filmamos, a molecada jovem seguia esse mesmo movimento. Um espaço muito interessante.

De que maneira eles transcendem o cancioneiro romântico retratado por você em "Vou Rifar Meu Coração"?

É uma música que não envelhece. Eu vejo os jovens aqui de casa, com 16, 17, 18 anos, super fãs, tocando Clube da Esquina em suas bandas, ouvindo esse som e se identificando muito com esse mundo musical. É uma sonoridade e uma poesia que são atemporais e que têm um diálogo muito forte com a juventude. Vejo uma semelhança muito grande com os Beatles, não à toa uma das maiores referências da "ala jovem" do Clube da Esquina. O Clube da Esquina traz um tempo-espaço da música brasileira muito diferente daquele que constitui a música romântica popular retratada no "Vou Rifar meu Coração". Dialoga com um público diferente, uma juventude politizada e ligada às artes. São poéticas diferentes. Uma é mais direta, mais concreta e mais abrangente em termos de público - a dos românticos - e outra, a do Clube da Esquina - com uma poesia muito complexa -, é uma música que vem de referências muito diversas, como o rock, o jazz, a música regional mineira, o choro, a música cigana do leste europeu, o progressivo, e... por aí vai.

O que o cinema musical documental oferece para você como campo de trabalho e de pesquisa?

Cada filme sobre música que faço é um mergulho em determinado aspecto do mundo e isso me encanta. Um filme sobre o Clube da Esquina poderia ser mil filmes diferentes, assim com um filme sobre Clementina de Jesus ou sobre a música popular romântica podem ser muita coisa também. São universos musicais e personagens muito vastos, densos, complexos. Pensar qual é o tema de que cada filme trata é um desafio muito interessante pra mim. Gosto de fazer documentários por ser um filão que exige uma relação forte com o mundo. Os filmes são um resultado da relação de cada equipe e filme com aquele mundo, ou com aquele aspecto do mundo que o filme toca. No caso do "Vou Rifar meu Coração", há o amor romântico, seus encantos e mazelas; no "Clementina", há a força da existência e da cultura negra no Rio de Janeiro, e uma vivência de mulher com a qual me identifico muito.

O que vem pela frente de seus projetos?

Estou finalizando um longa documental sobre a família brasileira. O filme se chama "Paraíso" e aborda, a partir de uma narrativa muito musical, a herança colonial na nossa vida em família. A ideia de família, no filme, é olhada tanto a partir de uma perspectiva mais íntima, doméstica, cotidiana, quanto de uma construção institucional, ligada ao poder público, às leis, à religião. Ligada a uma moral social muito marcada pelo nosso passado de colônia escravocrata baseada no latifúndio. O documentário se constitui por filmagens com seis núcleos de personagens e material de arquivo muito diverso, como telejornais, comerciais, discursos políticos, filmes domésticos. Estou ainda iniciando um longa sobre sexualidade a partir do ponto de vista do funk, chamado "Massa Funkeira".

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.