Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Anima, Portugal!

Ice Merchants | Foto: Divulgação

 

Ao mesmo tempo em que as plateias lisboetas se deliciam com a Monstra, maior festival de animações da "terrinha", em terras italianas, o Bergamo Film Meeting (BFM) promove um ritual de imersão em desenhos, computação gráfica, stop-motion e outras técnicas egressas de solos lusitanos. Uma retrospectiva com o melhor do cinema animado português agita o evento até seu encerramento, no domingo, com direito a um curta indicado ao Oscar, em 2023: "Ice Merchants".

Seu diretor, João Gonzalez, integra a seleção da maratona cinéfila da Itália ao lado de Marta Monteiro (representada por "A Sonolenta" e "Sopa Fria"); da dupla Vasco Sá e David Doutel (na programação com "Agouro" e "Fuligem"); de Alexandra Ramires (presente no BFM com "Elo"); e Laura Gonçalves (na grade com "O Homem do Lixo", "Água Mole" e "Três Semanas Em Dezembro").

"A animação faz parte da BFM desde o início: ao longo dos anos, temos prestado atenção a alguns dos maiores autores do cinema de animação como Jan Svankmajer, Tex Avery, Quay Bros, Regina Pessoa, Pierre-Luc Granjon, Pavel Koutsky, Vladimir Leschiov, Chintis Lundgren, Spela Cadez, Mariusz Wilczynski, Izabela Plucinska, Priit e Olga Pärn e Michaela Pavlátová", diz Diana Cardani, curadora de Bergamo responsável pela seleção animada. "Essas retrospectivas dessa turma autoral conseguiram satisfazer com sucesso o interesse da crítica e do público, em particular dos jovens. Ao contrário dos anos anteriores, para a BFM 42 não se trata de uma retrospectiva sobre um único autor, mas de uma visão geral das tendências da animação portuguesa através do olhar de alguns dos representantes das novas gerações de animadores cujas filmografias completas serão apresentadas. Por isso lhe chamámos Gerações XY!".

Lançado em Cannes, em 2022, "Ice Merchants" é uma experiência sensorial vertiginosa, vitaminada por um colorido exuberante. Egresso do Porto, seu realizador, João Gonzalez, de 27 anos, vem conquistando plateias com uma universalíssima história de amor entre pai e filho que evoca - em sua potência filosófica e em sua poesia - o mito bíblico de Abraão, sobretudo na abordagem feita por Soren Kierkegaard em "O Temor e o Tremor". É, portanto, uma saga (pocket, pois são apenas 14 minutos da mais eletrizante vertigem sensorial) sobre sacrifício. Em sua trama, um homem e seu filho saltam de paraquedas todos os dias, de uma casa esculpida no alto de um precipício gelado, numa paisagem que lembra os Alpes Suíços - com um quêzinho afetivo da Serra da Estrela. Os saltos são a maneira de eles se deslocarem até a aldeia que se situa na planície abaixo, onde vendem o gelo que produzem durante a noite, conseguido subsistência. Os pulos são um ritual de acolhimento, em forma de um abraço. Seus gorros lhes escapam das cabeças sempre que essa ritualística se repete criando uma situação cômica e plantando uma virada potente de roteiro - ou guião, como dizem nossos patrícios - no momento em que Gonzalez volta seu olhar para a questão ambiental.

"A valiosa colaboração com a Agência - Short Portuguese Film Agency permitiu identificar João González e outros cinco autores premiados nos festivais de Cannes, Annecy, Clermont-Ferrand, Zagreb e Busan e que receberam distinções de relevo como o Annie Award e o Academy Award, cimentando a reputação do cinema de animação português no mundo", diz Diane, por email, de Bergamo. "Esses autores distinguem-se pela capacidade de explorar a versatilidade da linguagem e de explorar as técnicas mais inovadoras: silhuetas recortadas, multiplanos, animação em areia, até às experiências mais recentes. Mas a técnica não é o único ponto forte destes autores. O que emerge dos seus filmes é também uma consistência de composição e de escrita, sempre original e por vezes imprevisível, que os mantém cativantes mesmo após várias visualizações. Estas concentrações de profundidade e competência têm levado a animação portuguesa ao reconhecimento internacional. O cinema animado de Portugal sempre foi muito importante desde o nascimento do cinema, e celebrá-la através dos seus jovens autores seria também centrar a atenção naquilo que podemos fazer aqui, em Itália, para revelar a autoralidade italiana na animação em geral e nos jovens autores em particular".

No Brasil, o Anima Mundi, paralisado desde 2019. foi o principal veio de exibição de filmes animados lusitanos. Em breve, estreia por aqui um representante de nossa antiga metrópole no setor: "Nayola", de José Miguel Ribeiro. O realizador de "A Suspeita" (2000) faz um balanço dos traumas bélicos de Angola. Sua trama segue três gerações de mulheres afetadas pela guerra civil: a avó Lelena, a filha Nayola e a neta Yara. Um segredo doloroso, uma busca imprudente, uma música de combate, um amor suspenso e uma jornada de iniciação: essa é a fórmula do roteiro, que foi aplaudido com ardor no Festival de Annecy, a Cannes da indústria audiovisual de desenhos.

 

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