Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Heranças estéticas da Berlinale

The Stranger's Case | Foto: Divulgação

Pelo segundo ano consecutivo, o Festival de Berlim encerra suas atividades com a entrega do Urso de Ouro a uma narrativa documental: "Dahomey", da franco-senegalesa Mati Diop. Sob a benção dos orixás e demais vetores da ancestralidade africana, o longa-metragem da diretora de "Atlantique" (2019) registra o regresso de relíquias roubadas por colonizadores ao Benin, seu país de origem. Uma dessas peças, chamada de N° 26, narra a trama em primeira pessoa, numa prosopopeia que evoca o culto aos exus.

Em 2023, nesse flerte do evento com a não ficção, a vitória ficou com "No Adamant", de Nicolas Philibert, um estudo sobre uma clínica fluvial que navega pelo rio Sena oferecendo atendimento (e acolhimento) a pacientes com problemas psiquiátricos. Este ano o próprio realizador retornou ao tema - e ao evento - com "Averroès & Rosa Parks".

Mas o garimpo berlinense de pepitas não se limitou a expressões documentais, a se destacar o drama brasileiro "Cidade; Campo", que rendeu o Prêmio de Melhor Direção da Mostra Encounters para a paulista Juliana Rojas. É um painel de amores e de resiliências, assuntos recorrentes no Berlinale Palast. Essa recorrência teve um perfume de adeus, pois foi o ano de despedida da gestão curatorial desenhada por Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian a partir de 2020. Agora, Tricia Tuttle, que vem do BFI London Film Festival, vai assumir as futuras escolhas da maratona cinéfila germânica.

O solo que ela tem para arar foi fértil em 2024. Confira os frutos mais suculentos dessa lavoura, que começa a chegar por aqui hoje, com a estreia de "O Astronauta" ("Spaceman"), com Adam Sandler, na Netflix:

TREASURE, de Julia von Heinz (EUA): Eleito "o filme fofo" da maratona alemã, esta dramédia põe a atriz e roteirista de "Girls", Lena Dunham, ao lado de um mito queer da cultura pop: Stephen Fry. Eles vivem filha e pai num road movie que se passa em 1991, data na qual a jornalista Ruth (Lena) leva seu pai, o imigrante judeu polonês Edek (Fry, sublime em cena), a um passeio por sua terra natal. Mas ela vai incluir campos de concentração no pacote, o que leva Edek, a lembrar da dor vivida por seu povo na mão dos nazistas. O tema é bem áspero. O longa, não.

DEMBA, de Mamdou Dia (Senegal): Apesar do clima espectral dessa narrativa, a suavidade reina sobre um painel de afetos familiares mesclado a sombras políticas de chagas coloniais. Na trama, com elementos fantasmagóricos, Demba (Ben Mahmoud Mbow) está às vias de se aposentar e busca mudar sua rotina, a fim de cicatrizar a dor da morte da mulher com que viveu por anos a fio. Mas a necessidade de reinventar sua relação com seu filho vai trazer fantasmas à tona.

LOVE LIES BLEEDING, de Rose Glass: Uma analogia com "Thelma & Louise" (1992), de Ridley Scott, e com "Gosto de Sange" (1984), dos irmãos Coen, ajuda a fazer deste thriller beeem sanguinolento um cult na grade da mostra Berlinale Special. Kristen Stewart vive uma gerente de academia de ginástica que se apaixona por uma fisiculturista (Katy O'Brien), que perde o juízo e o senso de brutalidade por amor e pelo uso abusivo de esteróides, que mudam seu corpo. Ed Harris rouba cada fotograma para si no papel do pai traficante de armas de Lou.

À QUAND L'AFRIQUE?, de David-Pierre Fila (Congo/ Angola): Atabaques se inflamam na evocação dr mitologias e histórias reais de povos de áreas rurais do Congo diante do irrefreável avanço da gentrifiação e do desmatamento. No filme, ritos que passam pela percussão abrem uma reflexão geopolítica com foco ecológico.

THE STRANGER'S CASE, de Brandt Andersen: Um dos últimos títulos a ser exibido, este drama coral lembra "Babel" (2006), uma vez que o conflito de um segmento afeta o outro. Ganhou o Prêmio da Anistia Internacional pela forma feroz com que expõe a batalha de um grupo de pessoas para escapar da violência na Síria, incluindo uma médica e um soldado filho de um herói local. Um mercenário interpretado magistralmente por Omar Sy (de "Lupin") vai cruzar o caminho de todos, com seu caráter nada louvável.

BETÂNIA, de Marcelo Botta: Uma viagem existencialista pelos Lençóis Maranhenses encantou Berlim sob o realce da fotografia de Bruno Graziano. Seu diretor, egresso de São Carlos, filmou com elenco 100% maranhense a saga de uma mulher, a Dona Betânia do título, que, aos 65 anos, passa por uma mudança, depois de enviuvar. A pedido das filhas, ela vai viver perto das dunas e se reinventa. Diana Mattos é a protagonista do longa.

SONS ("Vogter"), de Gustav Möller (Dinamarca): A dinamarquesa Sidse Babett Knudsen (de "500 Miligramas" e "Borgen") eleva o padrão europeu de atuação - sobretudo no trato com o silêncio - a outro patamar à frente do novo filme do realizador do cultuado "Culpa" (2018). Sidse encarna uma agente carcerária que entra num conflito existencial e profissional com a chegada de um jovem presidiário condenado pela morte de um colega de celas a facadas. A brutalidade com que ela passa a tratar o rapaz, associada a uma série de atos suspeitos, sugere uma estranha ligação dela com o preso. O clima de suspense do longa é enervante.

LES GENS D'À CÔTÉ, de André Téchiné (França): Neste elegante suspense, a onipresente diva Isabelle Huppert empresta seu talento ao mestre europeu na saga de uma policial que se afeiçoa por seus novos vizinhos até entrar em dilema ao descobrir que um deles tem um passado de crimes.

FARUK, de Asli Özge (Turquia): Nas raias da autoficção, este painel de conflitos geracionais em Istambul parte de um exercício de observação, com ares fabulares, feito pela cineasta a partir do dia a dia de seu pai, um nonagenário que esbanja carisma. O dispositivo afetuoso armado por Asli garantiu ao longa a láurea da Crítica, votada pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci).

A DIFFERENT MAN, de Aaron Schimberg (EUA): Pela primeira vez, em quatro anos, o prêmio de Melhor Interpretação de Berlim é dado a um homem, e logo um ator que é adorado por Hollywood: Sebastian Stan, o Soldado Invernal da Marvel. A vitória dele, merecidíssima, coroa um tipo de narrativa bizarra, entre o thriller e a comédia, de que Berlim gosta um bocado. Stan vive um ator que tem uma deformidade facial adquirida por tumor na pele. É sempre escalado para papéis exóticos até passar por um tratamento incomum que transforma sua aparência, mas liberta o que existe de mais angustiado nele. A extraordinária Renate Reinsve interpreta a vizinha que atiça seus sentimentos.

MEMORIAS DE UN CUERPO QUE ARDE, de Antonella Sudassi Furniss (Costa Rica): Longa ganhador do Prêmio de Júri Popular da mostra Panorama de Berlim. Uma vez que o assunto mais recorrente do festival foi a vida depois dos 60, com a chegada da vehice, nada mais adequado para o cinema hispano-americano renovar sua força estética do que um painel experimental sobre três mulheres que se assumem idosas: Ana (68 anos), Patrícia (69) e Mayela (71). Elas falam de seus desejos e de seus medos.

ABOVE THE DUST, de Wang Xiaoshuai (China): Este trator estético asiático acabou na mostra Generation (de orientação infantojuvenil) por se debruçar sobre o que se passa na cabeça de um menino de 10 anos. Na trama, o pequeno Wo Tu sonha ter uma pistola d'água num campo de trabalhadores que sofre um processo de desapropriação de bens pelo estado. O desejo do garoto vai levá-lo a exóticas ações.

FORÇA BRUTA 4 ("The Roundup: Punishment"/ "Beom-Joe-do-si 4"), de Heo Myeong-haeng: Berlim brincou de ser Cannes ao finalizar sua competição com um thriller de porradaria pop, egresso da Coreia do Sul e dirigido por um dublê. Essa trama de investigação e tapas na cara é uma sequência de um sucesso mundial de bilheteria "Força Bruta", lançado aqui em 2022. Ma Dong-seok, ou Don Lee, o Gilgamesh da aventura "Eternos" (2021), da Marvel, é seu protagonista. Ele vive uma espécie de Dirty Harry da Ásia. Nesse novo filme, seu personagem, o detetive brucutu Ma Seok-do caça uma quadrilha de jogo ilegal online, cujo bandidão é um especialista em facas.

 

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