Sara Silveira: 'O importante é fazer um cinema de mulheres, feminino, de resistência'
Quatro anos se passaram desde que a foto usada para ilustrar esta página, esboçando toda a indignação (e a baita coragem) da produtora Sara Silveira correu o mundo, a partir do Festival de Berlim, evento para onde ela volta esta semana, para lançar "Cidade; Campo". Estávamos, àquela época, às vésperas de a pandemia ser deflagrada, em meio a um dos muitos picos de hostilidade do governo Jair Bolsonaro contra as políticas culturais de inclusão do Brasil. Sara concorria ao Urso de Ouro com "Todos os Mortos", dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra, e expôs sua resiliência, num gesto acompanhado por um discurso de bravura.
Saber resistir é uma arte que ela pratica - com louvor - desde os anos 1990, quando firmou seu nome - mundo afora - no rol da produção latino-americana. Cults como "Dois Córregos" (1999), "Durval Discos" (2002), "Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009), "Mãe Só Há Uma" (2016) e "As Boas Maneiras" (2017) abrilhantam seu currículo, repleto de coproduções internacionais. Os maiores festivais do planeta sempre abrem espaço para seus filmes.
A cineasta Juliana Rojas, realizadora com quem Sara trabalhou em produções aclamadas como "Um Ramo" (2007) e "Trabalhar Cansa" (2011) - ambas pilotadas em dupla com o já citado Marco Dutra -, é quem dirige "Cidade; Campo". O filme concorre na Berlinale, na mostra Encontros, onde terá uma série de projeções a partir da próxima segunda. Na entrevista a seguir, Sara faz um balanço do mercado no qual virou sinônimo de excelência.
Desde meados dos anos 2000, você vem acompanhando os passos de Juliana Rojas. Está com ela desde sua estreia. O que esse novo longa-metragem dela, "Cidade; Campo", demarca na travessia dessa cineasta?
Sara Silveira: Juliana é parceira faz muito tempo, desde o início da sua carreira. Seguimos juntas numa cinematografia que nos interessa. Esse novo longa é um caminho que dá seguimento à carreira dela, falando de questões sociais, mostrando as mulheres sobrepujarem bravamente seus desafios. Mulheres procurando caminhos e respostas. Vejo um filme maduro. Na nossa relação, é mais um filme, pois seguimos juntas com projetos futuros já pensados. O importante é fazer um cinema de mulheres, cinema feminino, cinema de resistência, que hoje está bem contemplado nesse festival.
À força de cults como "Trabalhar Cansa" (2011), você construiu uma estrada singular de coproduções internacionais e de entrada em festivais estrangeiros classe AA, como Berlim e Cannes. O que mais (e melhor) mudou nos mecanismos de parceria entre o cinema brasileiro e produtoras do exterior?
A pandemia atrapalhou o trabalho de todos. Nossas empresas passaram por um emagrecimento para suportar quase quatro anos sem cinema, com a perseguição que houve em relação à Cultura. Nesse aspecto, esse trabalho de coprodução é um ofício que se estende há anos, é uma network. É trabalho de formiguinha, no qual você vai montando as peças e conhecendo as pessoas, sempre acreditando em si mesmo para buscar essas coproduções. As coproduções só nos dão coisas boas, porque a gente tem suporte. Com elas, vem um dinheiro estrangeiro que vale bem no Brasil. Elas dão um upgrade aos filmes, porque o fato de ter coproduções internacionais sempre facilita, um pouco, o caminho da chegada desses filmes ao mercado e aos grandes festivais. Mas nós ainda estamos engatinhando, pois a Ancine está retomando suas atividades. Com isso, temos que retomar todos os países com que tínhamos contratos, acertos e acordos de coprodução. Mas é importante destacar também o empenho que acontece quando nos unimos dentro do nosso próprio país para alavancar os recursos para a realização de uma obra.
Que parcerias internas são essas?
A gente teve parceiros muito legais, muito pontuais, como a Globo Filmes, a Spcine, a Quanta, a O2, o Telecine, o Canal Brasil e a Vitrine, nossa distribuidora, que também é nossa produtora associada. A nossa agência, da qual veio o nosso dinheiro, que se juntou a esses coprodutores brasileiros para que a gente pudesse realizar esse filme. Temos ainda a Sutor Kolonko, da Alemanha, e a Good Fortune Films, da França. Esse grupo todo se uniu para levar "Cidade/Campo" para Berlim, para representar o Brasil.
Você teve uma corajosa e inesquecível passagem pela Berlinale de 2020, na véspera de a pandemia da covid-19 começar, na passagem de "Todos os Mortos" na disputa pelo Urso de Ouro.
Muito me alegra voltar à Berlinale com "Cidade; Campo". Berlim tem um olhar para esse cinema mais reflexivo, autoral, e é um festival bastante aberto, que recebe todas as linhas, todos os gêneros, todos os sexos. Ele dá espaço a esses filmes chamados de art house, que ali podem ser mostrados mundo afora. Participar de um evento desse porte, desse nível, com um filme realizado com enorme esforço, é motivo de orgulho.
Nas suas três décadas como produtora de cinema, houve sempre uma Estrela de Belém a iluminar teus passos: o diretor Carlos Reichenbach, que partiu em 2012. O que dele ficou de mais forte em você?
Carlão é a estrela maior. Dificilmente teremos algo tão grande, tão maravilhoso, tão magnânimo nesse nosso cinema brasileiro quanto ele. Carlão é, sim, é a minha Estrela de Belém; da produtora Dezenove Som e Imagens; da Maria Ionesco, que é minha parceira. Sempre fomos um trio que trabalhamos muito bem juntos. Continuamos o trabalho dele, buscando esse cinema verdadeiro que o Carlão fazia.
O que existe dele em "Cidade; Campo"?
Lá está São Paulo, e eu realmente me lembrei do Carlão ao vê-la, porque ele gostava daquela cidade e sabia filmá-la muito bem. Juliana carrega consigo os subtextos desse universo. Eu espero que o Carlão nos ilumine em Berlim, para que a gente possa ter uma bela apresentação, em nome do nosso país.
