Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O crítico incriticável

O crítico francês, editor da Positif, em cena do documentário 'Michel Ciment, le Cinéma en Partage' | Foto: Divulgação

Iracundo diante da conquista da Palma de Ouro de 2010 por Apichatpong Weerasethakul e seu "Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas", o jornalista Michel Ciment ensaiou uma boca de urna tardia, na porta do Palais des Festivals de Cannes, para que seus colegas da imprensa fossem às salas de exibição assistir a seu filme favorito da competição daquele ano: "A Princesa de Montpensier", de Bertrand Tavernier (1941-2021). Agiu igualzinho na Berlinale 2017, depois de ver "Return to Montauk", de seu amigo alemão Volker Schlöndorff.

Partidário da ideia expressa no título de um clássico de Bud Spencer e Terence Hill - "Quem Encontra Um Amigo Encontra um Tesouro" -, Ciment vibrou ao saber que o moçambicano Ruy Guerra havia finalizado "Quase Memória" e ao ouvir o nome do alagoano Cacá Diegues entre as atrações da Croisette de 2018, onde estreou seu "O Grande Circo Místico". Ciment, que viveu de 1938 até 13 de novembro do ano passado, era só coração... no tanto de cérebro que dedicou a resenhar filmes, de 1963 até serenar, em 2023, aos 85 anos. Não é por acaso que a mostra Melhores do Ano, organizada pela Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) vai dedicar uma homenagem a ele ao longo de suas atividades.

O evento se bifurca. Parte dele rola de 7 a 13 de março, no Estação Net Rio, com entrada a R$ 15. A outra parte acontece de 12 a 17 de março no Ponto Cine, em Guadalupe, com entrada gratuita, e direito a oficina com o cineasta e crítico Mario Abbade. Toda a programação está em https://www.blgentretenimento.com.br/. O site oficial da ACCRJ - que comemora 40 anos de devoção à arte de narrar com imagens em movimento - traz textos sobre artistas e vozes teóricas que homenageia nesta edição de sua retrospectiva analítica anual. Seu rol de tributos póstumos se estende ao ator e diretor teatral José Celso Martinez Corrêa; ao compositor Burt Bacharach; e à atriz Léa Garcia. O coletivo carioca vai ainda coroar o documentário "Nelson Pereira dos Santos - Vida de Cinema", de Ivelise Ferreira e Aída Marquez, com o diploma de Melhor Iniciativa Cinematográfica de 2023.

O legado de Ciment entra nesse pacote. Em seu obituário, Cannes referiu-se a ele como "um espírito livre de insaciável curiosidade, incorporando o conceito de cinefilia". Seus escritos eram arejados pelo amor pela telona, num respeito seminal por Hollywood, que vinha desde 1944, quando ele (filho do alfaiate judeu húngaro Alexander Cziment) testemunhou as ações das tropas estadunidenses para livrar a França da ocupação nazista.

O impacto do episódio fez com que ele se interessasse pelo ethos da cultura americana e fizesse dos filmes egressos de lá objetos das críticas que escreveu para alguns dos veículos de imprensa de maior prestígio da Europa. A "Positif", revista fundada em 1952 e celebrizada como concorrente direta da "Cahiers du Cinéma" (a Bíblia do audiovisual), foi a plataforma mais prolífica de suas ideias. Começou a escrever lá em 1963. Três anos depois, em decorrência do sucesso de um artigo seu sobre Orson Welles (1915-1985), virou editor do periódico, sem nunca deixar o posto.

"Vale a pena você assinar a gente, até porque, na assinatura, ganha de brinde um DVD", dizia ele, todo orgulhoso, a vender seu peixe.

Com carinho paterno, cuidou da edição da revista até a pandemia, sempre exercitando seu interesse em perfilar cineastas com potência para criar uma obra própria e almejar um status de maestria, como o italiano Nanni Moretti, a belga Agnès Varda (1928-2019) e o americano Tim Burton. Parte desses perfis foram compilados pelo próprio Ciment em "Positif 50 years: Selections from the French film jornal", lançado pela editora do The Museum of Modern Art, em 2002. Aliás, ele lançou livros sem parar nas últimas cinco décadas, a partir de 1973, ano de lançamento de seu primeiro sucesso nas livrarias: "Kazan par Kazan".

Graças à paixão pelo diretor de "Sindicato de Ladrões" (1954) e por George Stevens (de "Assim Caminha a Humanidade"), ele puxou papo com Terrence Malick, quando "Terra de Ninguém" foi finalizado, em 1973. Malick era fã de ambos. Ao conversar com ele, Ciment tornou-se o primeiro e único jornalista a entrevistar esse recluso diretor de "Além da Linha Vermelha" (Urso de Ouro de 1999), que se recusou a falar em público até 2017, quando ministrou uma masterclass no Texas. A arte de entrevistar sempre foi o forte de Ciment, vide o livro "Passeport pour Hollywood: Entretiens Avec Wilder, Huston, Mankiewicz, Polanski, Forman & Wenders", de 1992.

Respeitado por sua gramática primaveril e pela memória prodigiosa, tinha opiniões ferinas. Embirrava com a escolha de Sean Penn como presidente do júri de Cannes de 2008, dizendo: "Os filmes que esse cara dirigiu são péssimos". Contestava com ardor a presença do cult lusitano "Juventude em Marcha", de Pedro Costa, na briga pela Palma de Ouro de 2006. Era bem implicante com a figura (e os filmes) do diretor Jim Jarmusch, de "Daunbailó" (1986). Dava sensos controversos, como dizer que considerava "Gomorra" (2008), de Matteo Garrone, melhor do que "Z" (1969), de Costa-Gavras. No entanto, provocações à parte, respeitava a magia que um bom filme gera ao ser projetado na telona. Foi muito respeitado pelo amor que tinha pela dimensão analgésica do discurso cinematográfico.

Teria ficado orgulhoso ao saber que a ACCRJ elegeu "Assassinos da Lua das Flores", de seu querido Martin Scorsese, como Melhor Filme de 2023.

 

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