Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Travessias de outonos, glória africana e amor

'Black Tea', da Mauritânia, celebra o multiculturalismo | Foto: Divulgação

É difícil pensar num momento mais impactante - tanto em contundência política quanto em rigor estético - na Berlinale de 2024 do que a sequência de "Black Tea", concorrente ao Urso de Ouro egresso da Mauritânia, na qual uma noiva, no altar, diz "não" ao futuro quase marido dizendo: "Vá realizar seus desejos. Vai ser feliz".

Abderrahmane Sissako é o diretor responsável por essa metonímia de generosidade, mas também de empoderamento, que, em dado ponto, vira um conto multicultural sobre aceitação de diferenças (raciais, geopolíticas, amorosas) na ponte entre a África e a China. É lá que a tal noiva, interpretada por Nina Mélo, vai parar, em busca de felicidade. Encontra um dono de uma loja de chá que, às portas da casa dos 60 anos, passa suas escolhas pessoais em revista. Ele é um dos muitos personagens outonais que se destacaram no 74º Festival de Berlim, que termina neste domingo, mas anuncia os resultados de suas competições neste sábado.

Dois títulos latinos têm fortes chance de vitória, embora Abderrhamane dispare como favorito no gosto de muita gente que veio prestigiar a maratona cinematográfica germânica. O mexicano Alonso Ruizpalacios demarcou para si um espaço de fina excelência com "La Cocina", uma iguaria fervida numa panela de pressão sociológica que fala de imigrantes radicados num restaurante de luxo.

Já o colombiano Nelson Carlos De Los Santos Arias impressionou multidões com a premissa (e a estrutura meio documental, meio fabular) de "Pepe", cujo protagonista é... um hipopótamo. O bicho foi tirado de seu conforto nas águas africanas e levado para a América do Sul por um capricho do narcotráfico, que, a fim de ostentar, buscou Atlântico adentro uma mascote inusitada.

O Brasil tem chance de sair premiado, mas não na seleção principal. "Cidade; Campo", triagem de perseveranças femininas pilotada por Juliana Rojas (de "O Duplo"), concorre com brilho) na monstra Encontros, apoiado numa atuação coruscante de Bruna Lynzmeyer, Mirella Façanh e Fernanda Vianna. É uma trama bifurcada: de um lado, uma mulher migra para São Paulo; do outro, um casal se muda para uma área rural.

Entre os títulos na disputa na Encontros, "Demba", do senegalês Mamdou Dia, é um dos mais sólidos concorrentes de Juliana, narrando a reinvenção de um funcionário público viúvo que se aposenta. É mais um exemplo, além de "Black Tea", da exuberância das produções de CEP africano desta edição da Berlinale. Esse bonde emplacou outro (e requintado) representante na caça ao Urso de Ouro: "Dahomey", documentário que tem tudo para render a láurea de Melhor Direção para a franco-senegalesa Mati Diop. É uma expedição investigativa em torno do tráfego de relíquias do Benin que foram surrupiadas de sua pátria durante a colonização e, só agora, regressam a seu lar.

Muito se falou em "regresso" entre os 20 filmes em concurso, assim como muito se fala sobre partida, como é o caso da estonteante aventura nepalesa "Shambala", de Min Bahadur Bham, sobre uma jovem grávida do Himalaia que corre montanhas atrás do marido desaparecido. Um olhar metafísico para a noção de partida também marca "Another End", de Piero Massina, no qual Gael García Bernal tenta manter contato com a finada mulher (Renate Reinsve) e recebe uma ajudinha de uma empresa dedicada a fazer renascer os mortos. Gael atua com garbo.

Representado na disputa oficial pelo Urso de Ouro pelo prolífico artesão autoral Hong Sangsoo (na disputa com "A Traveler's Needs"), a Coreia do Sul vai encerrar a programação de inéditos da Berlinale 2024 esta noite com doses fartas de adrenalina, ao projetar o thriller "The Roundup: Punishment" ("Beom-Joe-do-si 4"). Essa trama de investigação e tapas na cara, dirigida por Heo Myeong Haeng, é uma sequência de um sucesso mundial de bilheteria "Força Bruta", lançado aqui em 2022. Ma Dong-seok, ou Don Lee, o Gilgamesh da aventura "Eternos" (2021), da Marvel, é seu protagonista. Ele vive uma espécie de Dirty Harry da Ásia. Nesse novo filme, seu personagem, o detetive brucutu Ma Seok-do bate pesado numa quadrilha de jogo ilegal online. Os títulos anteriores dessa cinessérie asiática desafiam as leis da gravidade, num padrão "John Wick" de excelência. É uma forma de Berlim se despedir dos cinéfilos na chave da vertigem.

 

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