Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA CINEMA - O ASTRONAUTA: A galáxia autoral de Sandler

Habituado a comédias, Adam Sandler divide opiniões ao atuar no drama 'O Astronauta' | Foto: Divulgação

Previsto para estrear na Netflix na próxima sexta, o devastador drama sci-fi tcheco-americano "O Astronauta" ("Spaceman") rasgou a Berlinale ao meio num Fla x Flu de "eu amo" versus "eu odeio" típico das incursões de seu protagonista, Adam Sandler, por gêneros distintos da comédia.

Foi assim até com "Joias Brutas" (2019), no qual se enfiou de cabeça na seara do thriller. Há mais uma projeção do longa baseado no romance "Spaceman of Bohemia", de Jaroslav Kalfar no festival alemão neste fim de semana: hoje, na sala Kino International. Já se espera mais um racha teórico entre seu público.

Celebrizado nas telas do Brasil na aveludada voz de Alexandre Moreno, o maior dublador de sua geração, Sandler encanta muitos com seu método único de implodir e de explodir em cena, mas irrita outros tantos em seu estilo cômico físico.

Mas "O Astronauta" fica a galáxias de distância de seu legado galhofeiro. É um ensaio existencial metafísico que conversa tanto com o "2001" de Stanley Kubrick quanto com "A Fonte da Vida", de Darren Aronofsky. É triste mas, ao mesmo tempo, analgésico.

A direção do sueco John Renck (da minissérie "Chernobyl") usa a palavra como sua espinha dorsal, mas provoca Sandler, a cada segundo, para extrair de seu olhar angústias e doçuras, de um jeito que o ator nunca fez.

Comediante de maior êxito comercial dos EUA em venda de ingressos e audiência via streaming nos últimos 25 anos, Sandler construiu uma persona (um valor simbólico) capaz de dar a seu trabalho uma diretriz rara na casta dos astros de Hollywood: ele virou um "ator autor". Cada vez que está em cena, ele dá um polimento inusitado ao arquétipo patético dos heróis humorísticos de modo a substituir a fragilidade estrutural deles por arroubos de fúria, expresso num grito característico, ganido, que Moreno dubla como ninguém, em simbiose.

A ideia de autor aplicada a Sandler aqui não segue o senso de "autoria" - ou seja, de ser um ator que escrever -, porém, sim, no senso de "autoralidade". O termo, consagrado no audiovisual a partir dos anos 1950, nas críticas da mítica revista "Cahiers du Cinéma", costuma ser usado apenas como uma designação para cineastas, aplicada só a quem deixa uma marca pessoal no coletivo de seus filmes. Essa marca é sempre uma reiteração, e pode se aplicar a um tema, à recorrências de um elenco, a retomada de certos traços formais na construção de planos. Um exemplo é Spike Lee: seus longas, de ficção ou documentais, sempre se expressam contra crimes raciais, recorrem a atores habituais (como Samuel L. Jackson e Denzel Washington) e sempre usam um efeitos de angulação em 45 graus em cenas catárticas.

Sandler é autor não só pelo desenho arquetípico que estruturou para si a partir do fenômeno "O Rei da Água" (1998) - o primeiro de seus longas a ultrapassar US$ 100 milhões na arrecadação -, mas por imprimir uma linha identitária em seu modo de produzir. Leva a trupe dele, os amigos atores dele, sua mulher (produtora) e sua filha (atriz) para histórias de amor sempre pontuadas por um debate sobre memória e paternidade. É o caso de "Como Se Fosse A Primeira Vez" (2004), exibido quase todo dia na TV a cabo brasileira.

Essa busca autoral dele dá corpo (e alma) ao que se vê em "O Astronauta", filme plasticamente refinado pela fotografia de Jakob Ihre e pela música de Max Richter.

Na trama, Sandler põe seus clichês e suas potências em xeque ao viver o cosmonauta Jakub Procházka, que vem de uma família de criadores de porcos da República Tcheca, e virou um herói para a Ciência em seu país.

Em meio a uma missão nas estrelas para estudar uma núvem radioativa, ele entra em parafuso pela culpa que sente de ter deixado sua mulher, Lenka (Carey Mulligan), na Terra. À sombra do isolamento, numa exasperante sensação de desterro, ele passa a ver uma criatura em sua nave, uma aranha gigante (com a voz de Paul Dano), que funciona como o Grilo Falante de Pinóquio: o bicho dá a Jakub a medida moral de suas escolhas.

Sem medo de flanar pelo céu do melodrama, "O Astronauta" se firma como um estudo sobre a neurose da ruptura e renova o repertório de um ator em contínua fricção.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.