Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Amos Gitaï: 'Modernidade é ruptura'

Amos Gitaï, o realizador israelense de 73 anos, volta às telas com 'Shikun' | Foto: Divulgação

Soou provocadora a decisão da 74ª Berlinale de escalar um filme inédito do mais famoso (e combativo) realizador de Israel, Amos Gitaï, para sua programação, no auge do conflito entre a pátria dele e a Palestina e aquecida com as críticas do presidente Luiz Inácio da Silva ao governo israelense, a quem acusou de genocídio.

Mas a provocação foi bem-vinda, sobretudo por sua força poética e pelo desempenho arrebatador de Irène Jacob na fragmentada narrativa de "Shikun". Com base num diálogo com a peça teatral "O Rinoceronte" (1959), de Eugène Ionesco (1909-1994), o realizador de "Kedma" (2002) e "Kadosh - Laços Sagrados" (1999) propõe a desconstrução das certezas políticas do presente. A trama acompanha situações absurdas de 20 personagens num prédio israelense. Na entrevista a seguir, o cineasta de 73 anos explica o que encontrou lá.

Que lugar um filme como "Shikun", vindo de Israel, ocupa num contexto de guerra?

AMOS GITAï: Eu rodei "O Dia do perdão", sobre a Guerra do Yom Kippur, quase 30 anos depois daquele conflito da década de 1970, e entendi, a partir dele o quanto a arte pode encontrar seu tempo. A arte não muda o mundo no momento que ela é gerada. "Guernica" não tirou Franco do poder quando saiu do atelê de Picasso, mas hoje é mais lembrada do que o legado ditatorial. Terminei "Shikun" antes da guerra. Ela chega agora a Berlim com a promessa de novas interpretações sobre o que passamos.

Como montar uma narrativa como a de "Shikun", que parece um quebra-cabeças?

A maneira com que James Joyce descreve Dublin em seus livros parece um puzzle, quebrando com as convenções descritivas que existiam na literatura antes dele. Éa prova de que a modenidade é ruptura. Picasso colaborou com isso quebrando a anatomia para além do que as impressões impõem. O cinema veio na sequência, com Chantal Akerman, com Roberto Rossellini, com Jen-Luc Godard, com Abbas Kiarostami, para desafiar as justaposições. Esses gestos da arte desafiam a ditadura capitalista da fórmula formatada. Como "Shikun" passa por um olhar moderno, o olhar de Eugène Ionesco, eu precisava desafiar a ideia de unidade na composição de imagens.

O que Ionesco aponta como caminho para o seu cinema?

O teatro dele é um espaço de desterritorialização. Neste momento em que (o primeiro-ministro Benjamin) Netanyahu pode destruir a Israel que conhecemos, um autor que me oferece a desobediência me ajuda a falar de pessoas descolocadas na realidade.

Como se processa seu trabalho com atrizes como Irène Jacob nessa estratégia de "desobediência"?

Costumo pedir aos elencos com que trabalho que interpretem o que pretendemos contar sem agirem como robôs interessados apenas no tapete vermelho da fama. E Irène é muito propositiva nesse aspecto.

 

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