Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Streaming, um garimpo para os tesouros de antigas Berlinales

'Dentro' traz Willem Dafoe no papel do ladrão de obras de arte Nemo | Foto: Divulgação

 

Contrariando Cannes, que fechou as portas para a Netflix em sua competição oficial desde 2017, a Berlinale flerta muito bem com o mais famoso dos streamings, assim como aperta as mãos das principais plataformas digitais da web, como comprova a badalação em torno da série Globoplay sobre Betinho, com Júlio Andrade.

Não por acaso, a grande promessa do evento alemão nesta terça-feira, "O Astronauta" ("Spaceman"), com Adam Sandler, é um Original Netflix. Por isso, não surpreende o fato de alguns dos longas-metragens de maior relevo do Festival de Berlim dos últimos anos - incluindo aí títulos com astros famosos - irem diretamente para a streaminguesfera, sem espaço em circuito. É o que se vê agora com o thriller "Dentro" ("Inside"), com Willem Dafoe. Na grade atual da Amazon Prime do Brasil, o suspense regado a doses de existencialismo, dirigido pelo grego Vasilis Katsoupis, arrebata fãs para si.

"Toda arte que se ocupa da condição humana é política", disse Dafoe, esperado aqui na terça, para participar da cerimônia de entrega do Urso de Ouro Honorário de 2024 ao diretor Martin Scorsese, que o dirigiu em "A Última Tentação de Cristo" (1988).

Em cartaz no Brasil como o cientista eunuco de "Pobres Criaturas", Dafoe tem uma atuação exuberante em "Dentro", dublado na Amazon por Márcio Simões. O filme passou na Berlinale em 2023. Até uns passinhos de "Macarena" ele ensaia, com direito a passar quase uma hora diante de nossos olhos construindo o que pode - na lógica de críticos de arte - ser chamado de "instalação". "Esse roteiro era quase uma planta arquitetônica que me permitia investigar o apartamento do personagem e sua psique", disse Dafoe ao Correio da manhã, lembrando-se de sua experiência no Brasil com Hector Babenco (1946-20160 nos sets de "Meu Amigo Hindu" (2015). "Babenco me deu um personagem incrível, num filme que merece ser redescoberto".

Eletrizante tanto em suas sequências de tensão quanto em sua reflexão sobre a essencialidade da arte, o filmaço de Katsoupis põe Dafoe no papel de um ladrão especializado no roubo de pinturas e esculturas. Seu personagem, Nemo, fica trancado num luxuoso apartamento, sem chance de sair, depois que a tentativa de assalto planejada por ele dá errado. Confinado num oásis de concreto, Nemo vai enlouquecendo pouco a pouco, numa narrativa febril.

Filme de abertura da Berlinale 2020, "Meu Ano em Nova York" ("My Salinger Year") nunca viu uma sala de projeção no Brasil, mas encontrou lar na Amazon Prime também, demonstrando a atenção que esse streaming devota às produções da maratona cinéfila germânica. Dirigida pelo canadense Philippe Falardeau, esta dramédia se apoia no carisma da atriz Sigourney Weaver. Há quatro anos, ela saiu da Alemanha ovacionada em sua atuação como uma bamba da edição de livros. E ela nem é a protagonista: o posto, no filme pertence a Margaret Qualley, conhecida pelo papel da jovem hippie que provoca Brad Pitt em "Era Uma Vez Em Hollywood".

Aclamado em várias línguas, "Meu Ano em Nova York" é um estudo sobre amadurecimento em um meio artístico onde a palavra mais poderosa é a aquela que chega escrita, justificando muitos silêncios nas relações interpessoais. Premiado pelo mundo afora com "O Que Traz Boas Novas" (2011), Falardeau concebeu uma delicada carta de amor à literatura, que escreveu e dirigiu baseado em memórias da escritora Joanna Smith Rakoff.

"A literatura é um lugar de encanto e de reflexão. Num filme tão feminino, de tantas mulheres fortes, foi fundamental ter uma fotógrafa no comando da câmera, como foi o caso de Sara Mishara, que filma com agilidade", disse o diretor em resposta ao CORREIO, na Berlinale.

Com ligeireza de "Sessão da Tarde" em sua análise sobre o amor, "My Salinger Year" recria os anos 1990 a partir da experiência de Joanna como aspirante a agente literária, cuidando da obra de J. D. Salinger (1919-2010), autor do cultuado "O Apanhador nos Campos de Centeio" (1951). Sua fama foi potencializada por seu comportamento recluso, avesso a entrevistas e contatos com leitores. É papel da personagem de Joanna (vivida por Margaret) protege-lo de suas tietes literárias, a mando da temida agente vivida por Sigourney.

Vai ter Berlinale 2024 até o dia 25.

 

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