Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Barbie’ é a recordista de indicações - Globo de Ouro reescreve sua história

| Foto: Divulgação

Devassada por polêmicas na chegada dos anos 2020, a Hollywood Foreign Press Association (HFPA) abriu suas portas em 1943, com o objetivo de estimular a circulação de notícias ligadas ao motel platônico do século XX - o cinema - para além dos muro dos Estados Unidos, tendo como principal chamariz de seu trabalho a organização de um prêmio anual: o Globo de Ouro.

A primeira cerimônia em que a láurea foi concedida ocorreu em 1944, no estúdio 20th Century Fox, de olho nos magnatas da indústria. Seu primeiro vencedor foi "A Canção de Bernardette", que conquistou vitórias nas disputas de Melhor Filme, Direção (Henry King) e Atriz (Jennifer Jones). Seu troféu - caracterizado por uma reprodução da esfera terrestre rodeada por uma película de filme cinematográfico - teve vários designers ao longo das últimas oito décadas. A versão distribuída atualmente pesa cerca de 3,5 quilos; é feita de latão, zinco e bronze; mede 11,5 polegadas, acoplando-se a uma base retangular, vertical, de notável elegância.

De 1950 até 2022, guerras internas - de egos e de condutas profissionais questionadas em parâmetros éticos - quase levou a festa de entrega dessa estatueta à extinção, sob a acusação de abusos de poder, falta de representatividade (das populações negras, asiáticas, indígenas) e sexismo.

 


Esforço contra o cancelamento

'Barbie' é a recordista de indicações na festa dos correspondentes internacionais | Foto: Divulgação

A ameaça de cancelamento reinou sob as cabeças da HFPA até uma revitalização, em 2023, o que deu ao contingente de profissionais de mídia envolvidos em sua realização a chance de abrir as atividades de 2024 com uma nova edição - a de número 81 - abençoada por toda a Meca do entretenimento. Uma nova leva de Globos dourados será entregue neste domingo. Agora, para evitar encrencas e o risco de cancelamento, o prêmio passa a ser gerido pela Eldridge Industry, a partir de sua subsidiária, a Dick Clark Productions.

Com transmissão no Brasil assegurada pela TNT e pela HBO Max a partir das 22h, a premiação da HFPA será realizada no Beverly Hilton, em Los Angeles, e vai ser exibida dos EUA para o mundo pela CBS. A emissora americana chegou a virar a cara para a Associação de Correspondentes de Imprensa hollywoodiana no auge dos escândalos. Mas, hoje, existe um armistício. Basta ver que o filme com maior número de indicações (nove) é um tratado feminista: "Barbie", de Greta Gerwig, atriz e cineasta que, em maio, vai presidir o júri pela Palma de Ouro de Cannes. Sua deliciosa mirada sobre a boneca mais famosa do mundo foi a maior bilheteria do ano que passou, com US$ 1,4 bilhão. A saga de como Barbie (Margot Robbie) vem para o mundo dos humanos, enquanto Ken (Ryan Gosling) faz de sua realidade de plástico um culto ao machismo, dispara na dianteira pelo prêmio de melhor longa cômico. Há distinção por gênero dramático.

Macaque in the trees
'Barbie' é a recordista de indicações na festa dos correspondentes internacionais | Foto: Divulgação

Existem peculiaridades na forma como a HFPA organiza a distribuição de seus concorrentes. Existem dois blocos de gênero na composição (envolvendo atrizes, atores e filmes): Drama e

Comédia/Musical. Existe ainda uma disputa à parte do cinema, voltada para séries de TV e de streaming, que é um universo à parte. Não por acaso, em 2007, Rainn Wilson, astro da hilária "The Office", foi anunciar os concorrentes fazendo uma troça: "We are TV actors", deixando no ar a impressão de que astros da telinha eram menos valorizados do que astros da telona. Isso foi antes de "Breaking Bad" e "True Detective" revolucionarem o audiovisual. Antes de existir a rede de plataformas de streaming. Este ano, a narrativa serializada com mais indicações é a tensa "Succession" (concorrendo em nove frentes), seguida por "The Bear" e "Only Murders in the Building" (disputando em cinco frentes cada).

Há muito investimento nesse terreno de séries, mas HFPA segue fazendo do cinema seu xodó e a lutar pela manutenção das plateias em salas de exibição - daí o prestígio de "Barbie". Todos os cults do ano ("Oppenheimer", "Assassinos da Lua das Flores", "Vidas Passadas") figuram na briga por Globos.

A obra-prima de Christopher Nolan sobre o criador da bomba atômica, J. Robert Oppenheimer é o maior rival de Greta Gerwig. Concorre a oito estatuetas, levando consigo a fama de ser "o melhor filme do século XXI" (de acordo com o prestigiado cineasta Paul Schrader, de "A Marca da Pantera") e uma arrecadação estimada em US$ 952 milhões, apesar de durar três horas e usar e abusar de jargões técnicos da Física em seu roteiro.

Este ano, a inovação mais ousada da HFPA - para o gosto da crítica - foi a criação de uma categoria para valorizar campeões de bilheteria e narrativas pop calçadas na cinemática (jargão para a escrita do movimento, típica do cinema de ação). Nessa leva, foram valorizados hits como "John Wick 4", "Missão: Impossível - Acerto de Contas: Parte Um" e a aventura animada "Homem-Aranha: Através do Aranhaverso". Na arte de surpreender, o colegiado da associação abriu múltiplas frentes para uma produção egressa da França, que conquistou a Palma de Ouro em Cannes, em maio: "Anatomia de uma Queda", de Justine Triet. Grande vencedor do European Film Awards (o Oscar do Velho Mundo), o suspense de tribunal foi indicado aos Globos de Melhor Filme (Drama), Roteiro, Atriz (Sandra Hüller) e Filme de Língua Não Inglesa.

Essa categoria rendeu frutos para nuestros hermanos em 2023, com a vitória de "Argentina, 1985", de Santiago Mitre, com Ricardo Darín. Este ano, a HFPA não escalou latinos, embora um dos cinco títulos que concorrem com "Anatomia de uma Queda" seja centrado na seleção uruguaia de rúgbi que se perdeu nos Andes, em 1972: o filme catástrofe espanhol da Netflix "A Sociedade da Neve", de J. A. Bayona, lançado ontem na grade de seu streaming. Os demais competidores representam a Itália ("Eu, Capitão", de Matteo Garrone); a Coreia do Sul (o já citado "Vidas Passadas", de Celine Song); o Reino Unido, ainda que falando Alemão (com "Zona de Interesse", de Jonathan Glazer, sobre um casal nazista na II Guerra); e a Finlândia. O audiovisual finlandês se candidata - e bem - com o badalado "Folhas de Outono", de Aki Kaurismäki, já em cartaz no Rio, que valeu ainda uma indicação para sua estrela, Alma Pöysti. O brasileiríssimo "Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho, não teve espaço, apesar de ser a produção que escolhemos para representar nosso cinema aos olhos da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Distinta da HFPA, embora abarque em seu colegiado votante alguns integrantes da Associação de Correspondentes, a Academia tem regras distintas do Globo de Ouro. Porém, como os dois prêmios ocorrem numa mesma temporada do ano (o primeiro trimestre), compartilhando os filmes que as associações sindicais hollywoodianas abraçaram como seus queridinhos, existe uma tendência a se comparar as duas cerimônias. Por isso, por anos a fio, o Globo foi tratado como uma prévia do Oscar. Hoje, essa aproximação simbólica mudou.

O que não mudou foi a atenção dada pela HFPA a fenômenos populares internacionais, como os animes do Japão também. Neste domingo, a indústria cinematográfica nipônica vai ter dois títulos na briga pelo prêmio de melhor longa animado. Um deles, "Suzume", de Makoto Shinkai, disputou o Urso de Ouro, na Berlinale, em fevereiro. O outro, "O Rapaz e a Garça" ("The Boy and the Heron"), que marca a volta de Hayao Miyazaki (de "A Viagem de Chihiro") à direção, depois de um hiato de dez anos, ficou em primeiro lugar na lista das maiores bilheterias dos EUA, no fim de semana passado. Sua receita já beira US$ 130 milhões. Miyazaki abriu o Festival de San Sebastián com o longa, em setembro, e foi saiu de lá coroado com o troféu Donostia, por seu legado autoral, iniciado em 1973.

Uma das produções mais elogiadas entre as atrações da streaminguesfera, o estonteante "Maestro", dirigido e estrelado por Bradley Cooper, com foco na vida do regente e compositor Leonard Bernstein, leva seu astro principal a brigar pelo Globo de Melhor Atuação Masculina de Drama e à láurea de Direção. Carey Mulligan também recebeu uma indicação, concorrendo ao prêmio de Melhor Atriz Dramática pelo longa, hoje no ar na Netflix. O filme fez sua primeira aparição no Festival de Veneza, em setembro, onde o Leão de Ouro foi confiado a "Pobres Criaturas", do grego Yorgos Lanthimos. Estima-se que a HFPA pode se render a Lanthimos e à sua estrela, Emma Stone. Ela disputa na frente das comédias. No front dos longas dramáticos, a atriz com mais chances de ser laureada é Lily Gladstone (estrela de origem indígena, com ancestralidade na nação Piegan Blackfeet) que combate o racismo contra os povos originários dos EUA no faroeste "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese.

Entre todos os cineastas em confronto pelo Globo dourado de Melhor Direção, Scorsese é quem mais tem chance de ser agraciado pela HFPA, pela relevância política e pela exuberância estética de "Assassinos da Lua das Flores" - no qual ele faz uma participação como ator. Seus dois musos, Leonardo DiCaprio e Robert De Niro, concorrem ao prêmio dos correspondentes. O musical "A Cor Púrpura" e a comédia "American Fiction" - reflexões sobre o preconceito racial nos Estados Unidos - despontam com vigor na caça à láurea da Hollywood Foreign Press Association.

Pouco depois da entrega do Globo de Ouro, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anuncia suas indicações no dia 23 de janeiro. A entrega das estatuetas será no dia 10 de março.

MOMENTOS ANTOLÓGICOS DA HISTÓRIA DO PRÊMIO

Em 1999, Walter Salles e Fernanda Montenegro subiram ao palco da festa da HFPA para buscar o Globo de Melhor Filme de Língua Estrangeira para o Brasil. Então molecote, o ator Vinícius de Oliveira, que vivia o menino Josué, ergueu a láurea, sob holofotes da NBC.

Em 2007, "Babel", de Alejandro González Iñárritu, conquistou o Globo de Ouro de Melhor Filme e foi para a disputa do Oscar como "O" favorito da Academia. Na hora H, só foi oscarizado na disputa de trilha sonora, com uma estatueta entregue ao argentino Gustavo Santaolalla.

Em 2009, ao conquistar o troféu de Melhor Ator por "The Wrestler" ("O Lutador"), Mickey Rourke dedicou sua vitória a seus cachorros. "Às vezes, quando uma pessoa está sozinha, tudo o que se tem é seu cão".

Em 2016, ao ser laureado com a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante por "Creed - Nascido Para Lutar", Sylvester Stallone foi ovacionado e dedicou o prêmio a seu personagem, o pugilista Rocky Balboa. Seu discurso: "Obrigado por ser o melhor amigo imaginário que alguém pode ter".

Também em 2016, Wagner Moura levou seu talento à festa da Hollywood Foreign Pressa ao concorrer com "Narcos", pelo papel de Pablo Escobar.

Em 2020, ao receber o Globo de Melhor Filme de Língua Estrangeira por "Parasita", o diretor Bong Joon Ho brincou com a resistência do cinema americano em prestigiar produções de línguas estrangeiras: "Filmes com legendas são legais. Se vocês superarem a barreira de dois centímetros que são as legendas"

 

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